27.5.20

O medo e a mágoa na vila onde Portugal enfrentou há um século uma outra “peste”: a tuberculose

Mariana Correia Pinto (texto) e Manuel Roberto (fotografia), in Público on-line

O novo coronavírus não chegou ao antigo epicentro da luta contra a tuberculose. Mas instalou mais medo do que a “peste branca”. Os dias da pandemia recordam ao Caramulo o isolamento pré-covid-19 e trazem saudades de dias agitados. A mágoa maior da vila do interior ainda é o abandono.

De repente ele estava ali, na morada da doença onde se sonhava a cura. À insuficiência da medicina atendera a crença nos poderes curativos do descanso, da alimentação certeira e dos bons ares do Caramulo. Valentina Vila fez a viagem de Bragança até à vila serrana para visitar o marido, recordando a fraqueza repentina do homem, as febres altas, o sangue expelido na tosse. Tuberculose, diagnosticara o médico, ordenando o internamento num sanatório. Ela não tinha medo. Ansiava o reencontro sem imaginar a surpresa com a geografia onde iria estacionar: “Era a coisa mais linda que já tinha visto…” Mais de 50 anos passados, ainda se emociona ao recordar aquele momento em que a ideia de futuro venceu o temor de um fim precoce para a “tísica”. Talvez por isso, desse ano de 1964 guardou primeiro a memória da serra “toda florida” e só depois a da doença. Ela que viu morrer gente e amparou, sem protecções, as hemoptises do marido e de muitos doentes do sanatório onde se empregou. “Não me incomodava. A gente não tinha noção, por isso não tinha medo.”

Valentina Vila, 82 anos, agarra-se a esse pretérito para enfrentar os tempos pandémicos de 2020. No sanatório Boa Esperança, hoje transformado em lar, trabalhava na “rouparia”, fazia as camas, cuidava dos doentes. Sem máscara, luvas ou gel desinfectante. “Sou uma pessoa que tem um nome que condiz comigo: Valentina, de valente”, brinca, fita no cabelo e camisola rosa posta. Aos filhos, preocupados com a covid-19, jura-lhes ter anticorpos criados pela experiência: “Vivi lado a lado com tuberculosos. Estou protegida desde esse tempo. Hei-de morrer, mas não é disto.” Não se confunda a convicção da transmontana com desprezo pela doença: “Agora é pior”, avisa se lhe pedem para pôr as duas épocas na balança. “Toda a gente faz muito cuidado. Respeitamos o vírus, que não conhecemos, por medo do que virá.”

No Caramulo, epicentro da cura da tuberculose em Portugal, onde outrora se guardou a maior estância senatorial da Península Ibérica, o novo coronavírus ainda não infectou ninguém. Mas infiltrou-se de fininho nos quotidianos. E transformou quase tudo.

São 10h30 e um casal toma o pequeno-almoço numa mesa do café Marte, uma mulher bebe um café, homens entram e saem, fazendo pedidos rápidos ao balcão. De fora, vem o ruído das máquinas a levantar poeira enquanto se instala um renovado saneamento na vila do distrito de Viseu, obra iniciada durante a pandemia. Hélder Leal não perdeu a energia para o confinamento nem se rendeu à crise instalada sem aviso no seu estabelecimento.

O negócio “baixou drasticamente” ainda a ordem para fechar portas não havia sido declarada e a retoma, agora que reabriu mas as regras impõem limitações de clientes, adivinha-se lenta. Accionou um processo de layoff, cancelou contratos com fornecedores, comunicou à distribuidora de jornais a suspensão do acordo firmado. Por mais de dois meses, a vila perdeu a sua “casa de utilidade pública”, como Hélder Leal gosta de classificar o seu café e restaurante, lugar onde os turistas paravam, os moradores conviviam, a conversa se esticava, os jornais se vendiam. Não há, naquele território com cerca de mil habitantes, mais nenhum quiosque.

Talvez por essa escassez de notícias, a Rádio Emissora das Beiras, difundida a partir de uma moradia bem perto dali, viu as audiências do 91.2 e do site subirem mais de 200%. A pequena redacção mantém centenas de vinis e CD empilhados, atesta a memória com recortes de jornais e posters autografados por cantores populares, mas mistura a fidelidade da programação inspirada nos tempos da onda média com alguma modernidade. Marta Catarina Rosa, a jornalista, conhece bem a fórmula de sucesso da rádio: “Não interessa tanto noticiar o que se passa no Parlamento, mas mais as obras da vila, o encerramento dos espaços”, exemplifica. Em tempos de covid-19, juntou à informação útil um lado pedagógico: permanecer em casa, manter distâncias, lavar as mãos.

Para Lopes da Rosa, o director da estação, o “grande medo” dos dias de hoje tem paralelo com os anos da “peste branca” a assolar o país e o mundo. “A tuberculose era uma tragédia. Aqui tratava-se muita gente, mas também morriam muitos. Ficavam aqui anos e anos internados, às vezes rejeitados pelas famílias.” Lopes da Rosa havia cumprido serviço militar no Norte de África e retornava à capital a ansiar a normalidade quando uma inspecção médica lhe detectou a doença. Estava o ano de 1974 a principiar. Estacionou os sonhos para rumar ao Sanatório Salazar, renomeado pelo povo como Sanatório 25 de Abril logo após a revolução.

Por essa altura, a estância sanatorial já vivia tempos de queda. Na terra rural do início do século passado, Jerónimo Lacerda instalara em 1920 um hotel para hóspedes com fraquezas, driblando ainda a palavra sanatório e a carga negativa da doença. Mas os anos 1930 eram já dramáticos, como demonstram as 13 mil mortes anuais registadas nas estatísticas oficiais do país. E a guerra civil espanhola e a Segunda Guerra Mundial faziam doentes de fora eleger Portugal para se tratar.

Em alguns anos, a vila ganhou movimento de cidade, com 20 sanatórios, rede de distribuição de água, barragem própria, rede de esgotos, centro de tratamento e incineração de lixos, uma estrutura para recuperação das águas contaminadas, posto de correios, central telefónica, matadouro, escola primária. A descoberta da estreptomicina, nos anos 1940, deu esperança renovada no combate ao bacilo de Koch e, duas décadas depois, a doença enfraquecia. As estâncias do Caramulo esmoreceram, até ao derradeiro fim, já nos anos 1980.

A agitação de outros tempos plantou saudades duradouras em terras serranas. Esmeralda Calheiros, 84 anos, trabalhou na lavandaria dos sanatórios. “Lavávamos tudo com água, sabão e lixívia”, recorda. Às vezes, a roupa dos doentes aparecia cheia de sangue e descobriam “pedaços de costelas”. As colegas “brincavam com a doença”, sem temores maiores: “Diziam: ‘Olha um bife’”, conta divertida. Todos se “governavam” ali, trabalhando nos sanatórios, directa ou indirectamente. E agora, vai dizendo da varanda florida da sua casa, já nada se assemelha ao passado: “O Caramulo caiu e caiu e caiu… Agora está mesmo no chão.”
Na rua da sua casa, junto ao cemitério, um homem enfrenta o sol com o guarda-chuva aberto. “José Brasileiro é o meu nome, assim me conhecem.” Tem 86 anos, nasceu no Caramulo e de lá nunca saiu. “Tomara aqueles tempos. Vivia-se melhor aqui do que na cidade.” Palavra de agricultor a quem a tuberculose nunca meteu medo e a covid-19 passa ao lado: “A doença aqui é muito difícil de pegar. O ar não autoriza a chegada do vírus. Só mesmo se vier de fora”, comenta convicto enquanto Esmeralda Calheiros passa, já de máscara na cara e chapéu florido. Vai ao cabeleireiro, dois meses de confinamento depois, tentando mascarar a inquietação entranhada nos seus dias: “Estamos a viver tristes e cada vez mais tristes...”

O sentimento é mistura de melancolia do passado e mágoa do presente. Assim o explica José dos Prazeres, proprietário do mercado Serrano, para quem “a tristeza maior do Caramulo continua a ser o abandono”. Os sanatórios em ruína, a população envelhecida e os mais novos a partir, vários restaurantes e café desaparecidos, a pousada encerrada, a sede da GNR com ervas daninhas. E, com a pandemia, hotel, posto turístico, museu e igreja fechados, a maioria das lojas trancadas, as ruas desertas. O posto médico encerrado.

Alice Costa sai do mercado com dois litros de leite num saco e logo se pronuncia sobre o acontecimento: “O posto tem de abrir, temos de nos juntar, novos e velhos, e ir a Tondela.” Aos 80 anos, conta histórias de dor profunda do passado, mas atira o pesar maior para o presente: “Este vírus é muito pior. Tenho medo.” No tempo da “tísica”, diz, “havia muita higiene, tudo era escaldado, havia escarradeiras na rua, nos cafés, na igreja, a louça D e S, para doentes e saudáveis”. José dos Prazeres entende o raciocínio. Também ele esteve internado num dos sanatórios, aos 18 anos, com “uma ferida no pulmão do tamanho da unha grande” e viu-se, nestes dias, a copiar comportamentos de outrora. “Quando havia tuberculose, fechava a janela do carro com medo do contágio, e agora aconteceu-me fazer o mesmo.” A mortalidade não é sequer comparável, mas o receio actual avolumou-se. “Lembro-me de ser miúdo e de haver aqui três e quatro funerais por dia”, conta, logo interrompido por Alice Costa: “O Diamantino carpinteiro fazia caixões dia e noite. Todos os dias morria gente.”

O medo não pode nada com Francisco Leite. Boina posta, máscara na mão, 88 anos cumpridos em Abril, chega à porta do mercado a desafiar José dos Prazeres para “jogar à bisca”. Foi parar ao Caramulo em 1955, depois de chegar da guerra na Índia, onde passou “fome de cão” sem vacilar perante nenhuma doença. Foi taxista e num carro de seis levava, por vezes, dez ou 12 pessoas. Apanhava muitas vezes os “magalas” de um dos sanatórios, levava-os a Viseu, ao Porto, onde quisessem. “Nunca apanhei nada”, orgulha-se. Ao novo coronavírus responde com lavagem de mãos e desinfectante. “Tenho cuidados, mas a vida continua”, avisa, indisponível para confinar a liberdade.
Na morada onde se viu a morte e enterrou a doença, habita há muito a solidão e o isolamento. Do pátio de casa, Valentina Vale já não vê a serra bela pela qual se apaixonou. “Há coisas que foram e já não voltam”, pronuncia baixinho, as lágrimas a abrilhantar os olhos. “Isto já não é o Caramulo, é uma serra morta.”