26.5.20

Pandemia abriu os olhos à Europa. “Precisamos de uma estratégia mais robusta em relação à China”, defende chefe da diplomacia da UE

Margarida Mota, in Expresso

Josep Borrell pede nova estratégia na relação entre Bruxelas e Pequim, numa altura em que há cada vez mais sinais de que a Ásia vai substituir os Estados Unidos como centro do poder global. “Só teremos hipótese se lidarmos com a China com disciplina coletiva”

A pandemia provocada pelo novo coronavírus pode ser um ponto de viragem na relação da União Europeia com o mundo. Esta convicção cresce de dia para dia nos corredores políticos de Bruxelas. “Os analistas falam há muito sobre o fim de um sistema liderado pelos norte-americanos e a chegada de um século asiático. Isso está a acontecer agora, diante dos nossos olhos”, afirmou esta segunda-feira o chefe da diplomacia da União Europeia (UE), Josep Borrell.

O espanhol falava para um grupo de embaixadores da Alemanha, país que em julho assumirá a presidência rotativa da UE. “A China está a ficar mais poderosa e assertiva e a sua ascensão é impressionante e gera respeito, mas também levanta muitas questões e medos”, disse Borrell. “Tornou-se moda falar na armadilha de Tucídides. Esperemos que isso não aconteça.”

A metáfora alude ao perigo que resulta quando uma potência emergente (neste caso a China) rivaliza com a potência hegemónica (os EUA) — como aconteceu no século V a.C., quando o aumento do poder de Atenas atemorizou Esparta e tornou o conflito inevitável (guerra do Peloponeso).

Europa tem sido “um pouco ingénua”
Face às alterações em curso na ordem internacional, “a pressão para escolher lados está a aumentar” junto do bloco europeu, reconheceu Borrell. Os 27 “devem seguir os seus próprios interesses e valores e evitar serem instrumentalizados por um ou por outro”.

Numa entrevista recente ao periódico francês “Le Journal du Dimanche”, Borrell reconheceu que a Europa tem sido “um pouco ingénua” na sua relação com a China, mas que a abordagem está a tornar-se mais realista.

Tanto Bruxelas como Pequim — ao contrário dos Estados Unidos de Donald Trump — são parceiros na promoção do multilateralismo, ainda que rivais ao nível da governança global, perseguindo modelos alternativos em especial em tempos de crise. “Nós, europeus, apoiamos um multilateralismo com as Nações Unidas ao centro. A China tem um multilateralismo seletivo baseado num entendimento diferente da ordem internacional.”

O “novo realismo” europeu poderá já estar a ter consequências. Segundo o diário britânico “The Guardian”, a Europa importa diariamente da China bens no valor de 1000 milhões de euros, “mas economistas dizem que já existem sinais de que algum comércio não está a regressar”.

Total dependência da China
O ocaso dos Estados Unidos pode até motivar a Europa a voltar-se para a alvorada asiática com mais determinação, mas o impacto global da covid-19 obriga a mexer na equação. Diante dos diplomatas alemães, Borrell confessou ter ficado surpreendido ao descobrir, durante a crise, que todo o paracetamol consumido na Europa é fornecido pela China.

O espanhol reconheceu ainda que o diálogo entre Bruxelas e Pequim nem sempre se tem pautado pela confiança, transparência e reciprocidade. Recentemente, a comissária europeia da Concorrência, Margrethe Vestager, realçou a falta de reciprocidade na relação entre europeus e chineses.

“Na parte ocidental da Dinamarca onde cresci, ensinaram-nos que se convidamos alguém para jantar e essa pessoa não retribui o convite, devemos deixar de convidá-la”, disse. A comissária defendeu que a Europa precisa de “ser mais assertiva e confiante acerca de quem somos”.

Para Borrell, os 27 têm uma lição prévia a interiorizar: “Só teremos hipótese se lidarmos com a China com disciplina coletiva”. Europeus e chineses têm prevista uma cimeira este ano, adiada pelo coronavírus e ainda sem data marcada.