27.5.20

A forma como a lei entende o racismo não protege as vítimas”

Joana Gorjão Henriques, in Público on-line

A coordenadora do projecto da Universidade de Coimbra, O combate ao racismo em Portugal: uma análise de políticas públicas e legislação antidiscriminação o projecto, critica as instituições que analisam as queixas.

Socióloga, Silvia Rodríguez Maeso é investigadora principal do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Tem trabalhado sobre racismo e coordena, além do COMBAT -O combate ao racismo em Portugal: uma análise de políticas públicas e legislação antidiscriminação o projecto POLITICS - A política do (anti)racismo na Europa e na América Latina: produção de conhecimento, decisão política e lutas colectivas (ERC, 2017-2022).

No COMBAT analisaram as queixas de racismo em 10 anos, de 2006 a 2016, feitas à Comissão pela Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR). O projecto começou em Junho de 2016 e tiveram que prorrogar prazos por causa da demora no acesso aos processos: só em Abril de 2019 é que começaram a trabalhar com o material. “Foi um processo longo, complicado”, desabafa. Entretanto, uma nova lei de combate à discriminação entrou em vigor em 2017, mas a investigadora considera que não trouxe alterações de fundo.

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Como foi o acesso aos dados?
Houve dificuldades no diálogo com o Alto Comissariado para as Migrações e com a Comissão pela Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) [responsável pelas queixas de racismo] e demora na resposta. É a primeira vez que se faz um exame destes processos: como é possível desde 2000 que não tenha havido uma análise destes processos? Acho que tem a ver com a própria falta de transparência da instituição em si. Demorámos mais de dois anos a aceder a informação.

Da análise dos processos, as forças de segurança são o grande problema?
A educação também é um problema terrível de reprodução do racismo; mas as forças de segurança têm bastante mais queixas porque são o braço de estado que condensa a violência e racismo estrutural. Se puxarmos o fio da polícia, chegamos à escola, à segregação habitacional…
Só há 108 processos nas áreas de habitação, educação e forças de segurança. E 80% dos casos são arquivados. Isto é um reflexo da cultura dominante, da ineficácia da lei?
De várias questões. Revela as dificuldades que a própria lei coloca. A forma como a lei entende o racismo não protege as vítimas. Revela uma cultura legal em Portugal, e no contexto europeu, que tem sido ignorante e reprodutora do racismo. Há também a negligência das instituições e da própria comissão deixar passar os prazos e de as inspecções dizerem que não são competentes para investigar a questão, isto foi um problema detectado na área da habitação. A lei contra a discriminação racial está no âmbito contra-ordenacional e por isso o prazo de prescrição é curto — as inspecções demoram, e se não há agilidade na resposta o processo prescreve e não há nada a fazer.

A investigadora refere dificuldades no acesso aos dados
Isso significa que o racismo está mal enquadrado em termos legais?
A lei também é fruto da cultura racista que existe na sociedade. A lei traduz legalmente uma punição, pensando de forma hegemónica o que é o racismo — um racismo reduzido a esta relação entre indivíduos, a um incidente, olhado de maneira descontextualizada, e centrado na motivação psicológica.

Como é que deveria reflectir então?
Não digo que a lei é toda errada mas podia ter-se criado conhecimento jurídico com um entendimento mais corajoso sobre o racismo. As inspecções têm sido pouco abertas a um outro entendimento do que significa discriminação racial. O debate sobre a lei é político. Em muitos dos casos o que vemos é que há políticas que favorecem que essa discriminação aconteça, como as políticas de segurança. O que a lei tem feito, a partir da posição da Inspecção Geral da Administração Interna (IGAI), é justificar as intervenções policiais e favorecer sempre o testemunho dos polícias. Mudar a lei, sem mudar a composição e a forma de proceder da IGAI, não serve de nada. A questão da lei não está fora dos entendimentos da cultura racista do país. É preciso também fazer uma discussão sobre a CICDR. Não é frutífero falar de mudanças na lei quando as instituições que trabalham na sua implementação continuam na mesma.

Torna-se quase impossível provar que houve racismo?
Dá essa sensação, porque mesmo que se passe algumas das barreiras para provar que aquela pessoa agrediu ou insultou, e isso é exemplar no caso de Alfragide, há uma negação activa do racismo e da experiência das pessoas que são vítimas. Está provado que o policiamento de determinados bairros está relacionado com a sua composição étnico-racial. Há um discurso fortíssimo de criminalização dos bairros periféricos, da população negra e de origem cigana. A sedimentação de políticas de segurança interna tem feito essa ligação. Quando chegam as denúncias a resposta da IGAI é que a polícia esteve a fazer o seu trabalho.

Concluem que quem está nas instituições tem falta de entendimento sobre o que é o racismo. É negação ou falta de informação e formação?
A ignorância não é inocente, é produzida. É obvio que não há uma formação no âmbito do Direito sobre a questão racial. Mas como dizia um senhor cigano em resposta ao arquivamento da sua denúncia, como é possível que num estado dito de direito e democrático, o trabalho da IGAI não seja acompanhado por outras entidades formadas em discriminação racial? O caso das intervenções das polícias. Vimos 48 casos, são muito poucos, mas a IGAI está farta de fazer processos disciplinares. Se fosse outro tipo de instituição as queixas seriam analisadas dentro de um padrão de intervenção policial que se repete. A questão do racismo acaba por estar muito dependente do insulto racial. Ninguém põe em causa por que a polícia faz estas intervenções, ninguém questiona as políticas que sustentam estas intervenções. E a prova fica dependente do insulto dos polícias, mas depois os polícias negam e a palavra dos polícias acaba por valer mais do que a dos queixosos.

Racismo: 80% processos acabam arquivados
Há um debate recorrente sobre a criminalização do racismo, mas já existe o artigo 240.º do Código Penal que prevê o crime de discriminação e incitamento ao ódio e violência.
Há muita coisa que não é abrangida por esse artigo. Por exemplo, a segregação nas escolas. Há um espírito na formulação deste tipo de artigos que tem muito a ver com o legado do que foi o nazismo na Europa, está muito ligado à ideia da pessoa racista que é extremista. Por exemplo, há um debate sobre a presença de extrema-direita na polícia: essa é uma realidade, mas não explica a violência policial. A violência policial está sustentada em políticas de segurança que favorecem intervenções que a legitimam. Não estou a dizer que a presença da extrema-direita na polícia não seja um problema, é um problema, mas se a solução passasse por aí seria mais “simples”, entre aspas. A questão da violência policial tem que estar ancorada num debate mais amplo sobre a criminalização da juventude negra e cigana.