20.5.20

O confinamento fez-nos mais caseiros ou não temos onde ir?

Graça Henriques, in DN

As restrições foram aliviadas, até já há comércio aberto e mais gente na rua, mas a casa continua a ser o porto seguro contra a covid-19. Histórias de quem está a começar a desconfinar - e de quem nunca confinou.

O desconfinamento obrigou a que Salomé Pinho, 40 anos, tivesse que fazer uma espécie de folha excel para se coordenar com o marido. Ela é investigadora no I3S (Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto) e Ricardo Marcos-Pinto é médico gastroenterologista no Hospital de Santo António. Com duas crianças pequenas em casa não é fácil coordenar os horários - Salomé esteve em teletrabalho, ao mesmo tempo que acompanhava os filhos, mas as responsabilidades profissionais, a coordenação de um grupo de 11 pessoas e projetos de investigação em curso, alguns urgentes para concluir, começam a pedir a sua presença no local de trabalho, mesmo que não seja todos os dias. Além disso, Salomé está agora a coordenar um projeto sobre covid-19 em colaboração com o Hospital de Santo António e os compromissos profissionais começam a não dar margem para ausências físicas a 100%.

O I3S abriu a 25% na semana anterior e Salomé desloca-se lá quando o marido está em casa, muitas vezes depois de 24 horas de trabalho nas urgências. Gonçalo e Carolina têm respetivamente 6 e 9 anos e exigem o acompanhamento natural da sua idade. Mas isso requer muito planeamento, sobretudo quando os pais têm profissões tão exigentes. A solução do casal foi a realização de um plano semanal para se organizarem e um planeamento diário com as crianças, com as tarefas para o dia seguinte.

Desde 12 de março que os dois filhos da investigadora e do médico estão em casa, porque foram detetados casos positivos na escola que frequentavam - o fecho total dos estabelecimentos de ensino só aconteceu por determinação do Governo a 16 de março e vai manter-se até ao final do ano letivo, com exceção para os alunos dos 11.º e 12.º anos e também as creches que regressam na próxima segunda-feira.

"A primeira semana de confinamento foi difícil, de muita ansiedade e stresse", conta Salomé Pinho. Havia os projetos em curso, outros a começar. "Havia ainda a dúvida se o meu marido iria para a linha da frente e depois explicar aos miúdos que a escola agora é em casa." Já em fase de desconfinamento faz um balanço positivo, mas admite que não foi fácil para ninguém. "O ser humano não foi feito para estar tanto tempo confinado."
Desde que a 3 de maio acabou o estado de emergência, a grande diferença para a família de Salomé é que ela passou a ir algumas vezes ao local de trabalho. O resto continua igual - as crianças saem ao fim da tarde para libertar energias, sempre junto à casa.

"Se cada um fizer a sua parte poderemos flexibilizar mais."
Ainda não há encontros com a família, nem sequer um café com os amigos. "Faz-me muita falta as reuniões familiares. Aos fins de semana íamos jantar a casa dos pais, com o meu irmão, com os filhos dele. Há dois meses que não tem acontecido."

O verão está a chegar, mas Salomé ainda não consegue pensar em férias. E agora é a cientista que fala, lembrando que só a partir da próxima semana se terá noção do impacto das medidas de desconfinamento, que ditaram nomeadamente a abertura do pequeno comércio e cabeleireiros a partir de 4 de maio. "Se cada um fizer a sua parte poderemos flexibilizar mais. É importante começarmos a circular protegidos para se criar imunidade de grupo."
A investigação da Escola Nacional de Saúde Pública mostra que apenas mais 2% dos portugueses saíram de casa depois da suavização das restrições, o que não teve impacto na curva epidemiológica que traça a evolução da pandemia de covid-19. Serão os portugueses sensíveis ao apelo do primeiro-ministro quando falou em "dever cívico de confinamento" quando se passou a 3 de maio do estado de emergência para o estado de calamidade? Mantêm o receio de serem contagiados? O confinamento alterou os hábitos ou não saem porque não há muito onde ir? Os restaurantes só reabrem a 18 de maio, os shoppings e cinemas a 1 de junho, as praias estão vedadas até 6 de junho, exceto para pratica desportos náuticos individuais…

Para Rita não houve (des)confinamento
Na casa de Rita Ferreira, 41 anos, não houve confinamento nem desconfinamento - a não ser para os filhos de 8 e 21 anos. Ela trabalha num grande supermercado, o marido na construção civil e todos os dias saíram de casa para cumprir as obrigações profissionais - ela com risco e, sobretudo no início da crise pandémica, com muito receio, ele com menos porque trabalha mais isolado.

Teve a sorte das aulas síncronas acontecerem no seu horário de trabalho e poder assim estar presente para ajudar Tomás. No resto do tempo em que está a trabalhar, está o Rodrigo em casa com o irmão. Ainda assim o plano escolar semanal com o mais novo é feito no domingo ao final da tarde e começam logo a fazer as tarefas.

O aligeirar das restrições não alterou muito a vida desta família de Tondela que, além de sair para o trabalho e para fazer compras, se mantém por casa. O filho mais velho só saiu há dias por causa de um trabalho para a faculdade. "Praticamente não mudou nada. Mantemos a rotina diária, trabalho-casa, casa-trabalho."

Até em relação à mãe, Rita diz que não mudou a atitude - antes visitava-a mas estavam em divisões diferentes, agora mantém uns quatro metros de distância. Mas Tomás já tem direito aos beijinhos e abracinhos que tanto reclamou. Se por um lado não é fácil recusar carinho aos filhos, por outro Rita diz que temos de ser positivos.

Embora otimista, não nega que ainda sente receios. Menos que nas primeiras semanas, é certo, quando as fronteiras não estavam encerradas e regressaram muitos emigrantes para passar a quarentena em Portugal. As fronteiras terrestres com Espanha continuam fechadas até 15 de junho e não há data para retomar as ligações aéreas.

Silvana Cruz, 50 anos, vive a mais de 250 km de Rita, sua irmã. Desde que começou o confinamento nunca mais se viram pessoalmente. Com o aligeirar das medidas de restrição, Silvana rumou, contudo, de Lisboa à Serra do Caramulo para ver a mãe. Foi a sua única saída nestes dois meses - desde que ficou em casa nunca mais abasteceu o carro.

Silvana é governanta geral num hotel e, sendo o setor turístico um dos mais afetados com a pandemia (estimam-se perdas mundiais entre 60 a 80%), também ali as reservas começaram a ser canceladas. Ainda tirou duas semanas de férias, mas acabaria por entrar em lay off total a 1 de abril - "não dá para fazer teletrabalho", diz.

Tem aproveitado o tempo para as habilidades na costura e para coser máscaras. O marido, militar, continua a trabalhar, mas de resto as rotinas passaram a girar à volta da vida doméstica. Guilherme, o filho de 21 anos, assiste às aulas online e só saiu no fim de semana passado para ir a casa de um amigo que fazia anos.

"A mim esta pandemia fez-me caseira. Eu não conseguia ficar um dia sem ir à rua, nem que fosse para beber um café e agora estou praticamente uma semana sem sair. Há dias fui dar uma corrida, mas preferi ir sozinha. Enquanto me puder proteger, protejo-me."

Silvana vai ao supermercado quando tem mesmo que ir, grande parte das vezes é o marido que faz as compras. "Faz-me alguma confusão. Tira, põe máscara, desinfeta mãos, as pessoas que mexem aqui e ali..."
Ainda não sabe se regressará ao hotel no início de junho, mas tem saudades do ativo. Enquanto isso, em casa mantém-se quase tudo igual. "Não estamos em estado de emergência, mas é como se estivéssemos."

"Em casa não se consegue descontrair"
Helena Costa, 50 anos, desconfinou no dia 4 de maio, quando o Governo permitiu que voltasse a abrir a sua loja de roupa de criança na baixa de Setúbal. Esteve "enclausurada a 100%" cerca de mês e meio, mas as contas para pagar mantiveram-se e, verdade seja dita, já estava cansada de estar em casa.

Não fosse a loja, a sua vida seria igual ao período em que o país esteve em estado de emergência. "Faço as compras uma vez por semana e evito ao máximo sair. Senão nunca mais nos vemos livres disto." O marido, António, é engenheiro informático e ainda está em teletrabalho.

Mas ter uma loja aberta ao público traz riscos. "É difícil não pensar na parte monetária. Há os cheques para pagar, muitos compromissos, temos que arriscar, cumprindo sempre as normas da DGS."
"Em casa nem se consegue estar descontraída com esta situação. Olhamos para o mundo e vemos pessoas a passar fome. Deixa-me muito ansiosa", lamenta Helena .

Uma ansiedade que atingiu todos os limites quando os dois filhos, que vivem em Londres, adoeceram. Um a seguir ao outro. Tiveram febres muito altas, dores no corpo, dores de cabeça. Foi logo no início de março e o Reino Unido ainda estava a seguir a política de imunidade de grupo, sem restrições sanitárias. Os dois foram aconselhados pelas autoridades de saúde a não saírem de casa durante uma semana, mas não chegaram a fazer o teste ao covid-19.

"Foi muito angustiante", diz Helena. As notícias não a descansavam, sabia-se ainda menos do que se sabe hoje sobre a doença. Os filhos recuperaram bem, mas os abraços estão adiados. A viagem que tinham para a Páscoa obviamente não se realizou e não se sabe quando poderão viajar.

"Tento levar uma vida normal, dentro das regras e do que me é possível fazer."

Ramiro Pinto, 55 anos, também voltou à sua atividade profissional no primeiro passo para o desconfinamento, a 4 de maio quando passou a ser permitida a prática de desportos individuais. É treinador de golfe na Quinta do Fojo, em Vila Nova de Gaia, um desporto, sublinha, sem contacto físico e com os praticantes afastados um dos outros. Ainda assim, até agora só regressaram cerca de 60% dos seus 50 alunos.

"Tento levar uma vida normal, dentro das regras e do que me é possível fazer." A suavização das restrições já permitiu, por exemplo, que voltasse a fazer surf.

Ramiro não só tenta como quer fazer uma vida normal. Cumprindo sempre as recomendações e tendo todas as precauções, sublinha. Uma das coisas de que mais tem saudades é da vida social, de poder jantar fora com a mulher Paula, de poder ir a um bar à noite, mas também de visitar a mãe que está num lar - as visitas voltam a ser permitidas a partir de segunda-feira.
Já pegou no telefone para marcar mesa para o restaurante preferido mas ninguém lhe atendeu o telefone. As marcações são aconselhadas, tanto mais que os restaurantes estão limitados a 50% da sua lotação.
A família voltará a ter outra injeção de normalidade na próxima segunda-feira Ricardo, filho da mulher, Paula, regressa às aulas presenciais. Para minimizar os riscos, Paula diz que vai levá-lo à escola, evitando assim que apanhe o metro e para que todos se sintam mais seguros e menos preocupados.

"As pessoas podem utilizar a máscara, mas o distanciamento social nos comboios é uma ilusão."

Ao contrário de Ramiro, Carlos Lopes, 59 anos, esteve sempre a trabalhar. E sempre a usar transportes públicos - é operador de logística num armazém de medicamentos no Cacém e vive em Linda-a-Velha, o que o obriga a apanha um autocarro até Campolide e depois o comboio da linha de Sintra.

Anda no sentido contrário das grandes enchentes, mas vê o que se passa do outro lado da plataforma onde, diz, os comboios andam apinhados. "As pessoas podem utilizar a máscara, mas o distanciamento social nos comboios é uma ilusão." Até em pleno período de quarentena os comboios andavam cheios - "pedia-se distanciamento social mas tiraram composições", além de que muitos horários deixaram de ser cumpridos com o número de passageiros a avolumar-se nos cais.

Só o autocarro da Carris, o 751, que apanha para a estação de Campolide lhe permite cumprir as normas sanitárias, mas depois do levantamento da estado de emergência já acontece os passageiros irem sentados ao lado uns dos outros.

Para Carlos é importante que as pessoas comecem a sair de casa, com os devidos cuidados, até por questões psicológicas. "Receio não tenho. Criou-se demasiado pânico. Não sei se o clima de medo é bom."
Os próximos tempos o dirão.