26.5.20

“Não podemos ir de crise em crise e haver pessoas que ficam sem nada”

Maria Caetano, in Dinheiro Vivo

“Miséria do Tempo”, de Renato do Carmo, prossegue um estudo que já deu voz a jovens precários. Desta vez, fala do desemprego à entrada de nova crise.

É a sequela de um mal-estar que se arrasta, pelo menos, desde a crise financeira. No ano passado, produziu “Retratos da Precariedade” e, agora, traz as vozes de quem, frente à economia que nos últimos anos progrediu para integrar milhares no mercado de trabalho, continua apesar de tudo a ficar para trás.

O livro “Miséria do Tempo – Vidas Suspensas pelo Desemprego”, publicado pela editora Tinta-da-China, chegará às livrarias dia 4, atrasado pela pandemia.

Entre os retratos do jovem precário de 2019 e os do desempregado de meia idade, neste ano, Portugal foi de uma recuperação na qual se iniciava a concertação para uma subida de rendimentos até uma nova crise no emprego que já começou a expulsar milhares. Serão em muitos casos os mesmos de antes, os mais vulneráveis, admite Renato Miguel do Carmo, autor deste estudo em conjunto com Maria Madalena d’Avelar. Numa semana em que o governo se prepara para desenhar com partidos e parceiros as novas medidas que terão de suportar postos de trabalho e quem ficou sem rendimentos, o livro do sociólogo serve para lembrar que há quem assista aos altos e baixos da economia sem nunca largar a condição de crise.

“O princípio de ninguém ficar para trás devia nortear as políticas desde já”, defende o coordenador do Observatório das Desigualdades do ISCTE. Para que a sociedade como um todo tenha mais capacidade de resistir.

A sociedade como um todo tenha mais capacidade de resistir. O livro “A Miséria do Tempo – Vidas Suspensa pelo Desemprego” apresenta uma nova parte da investigação que tem conduzido sobre o grande ajustamento que o mercado de trabalho teve após a crise financeira de 2008, olhando agora para a realidade dos desempregados de longa duração. Que tipo de testemunhos traz? Renato Miguel do Carmo – O objetivo foi fazer uma análise mais aprofundada do tipo de pessoas que, apesar da recuperação, continuavam na situação de desemprego, ou já estavam de tal maneira a ficar para trás que tinham grande dificuldade em regressar ao mercado de trabalho. Esse perfil estava mais ou menos identificado na estatísticas: uma população com níveis de escolaridade mais baixos e com idade tendencialmente mais avançada.

Foram 46 entrevistas aprofundadas para abarcar dimensões de caráter socioeconómico, de percurso de vida, da própria experiência subjetiva do desemprego, saúde mental, e perceber como a experiência de desemprego afeta o indivíduo e os seus próximos. As últimas estatísticas, antes da crise atual, demonstravam que havia uma incidência da pobreza na população desempregada. Apesar de o desemprego estar a diminuir, na população que continuava no desemprego o risco de pobreza estava a aumentar. No final do ano passado, quase metade das pessoas encontravam-se em situação de pobreza. Há este problema de privação que encontramos depois nos casos que fomos estudando.

São casos de pessoas que durante a última crise ficaram em situação de desemprego e que não conseguiram um regresso ao mercado de trabalho?
R.M.C. – São várias crises. Muitas daquelas pessoas têm trajetos cumulativos de vulnerabilidade social e económica. Isso é muito característico do mercado de trabalho em Portugal nas faixas do trabalho manual e menos qualificado. Durante os anos 1980 e até ao início deste século, eram pessoas que apesar de terem baixos salários, no fundo, tinham sempre emprego. O desemprego não era um problema. Aliás, no início do século tínhamos uma taxa de desemprego na ordem dos 4%. Ter emprego não era um problema, embora houvesse a questão dos baixos salários. Com a crise de 2008, começou a ser muito difícil e algumas destas pessoas conheceram o desemprego pela primeira vez, outras tinham trajetos de desemprego anteriores, e tiveram uma grande dificuldade em regressar ao mercado de trabalho com uma idade mais avançada e níveis de qualificação muito baixos. Ficaram presas numa situação muito vulnerável.

Nalguns testemunhos do Webdocumentário que acompanha o livro, “Demasiado Novo para Ser Velho”, as pessoas falam das respostas institucionais que encontraram. Nomeadamente, nos centros de emprego. Há dificuldade de a reinserção profissional, de a formação, responderem ao quadro específico destas pessoas?
R.M.C. – Há várias dificuldades na relação com os serviços, e que não são específicas do nosso país. Lembro-me sempre do filme do Ken Loach, “I, Daniel Blake”. É muito esse perfil que também em Portugal acontece. Há uma dificuldade de relacionamento com os serviços, também por alguma iliteracia, e outra coisa muito saliente é que as pessoas vivem percursos de desproteção social. Têm carreiras contributivas irregulares, muitas vezes porque a entidade patronal acabou por não fazer as contribuições que era suposto fazer e a pessoa só descobriu posteriormente, ou pelo facto de algumas destas pessoas – infelizmente, acontece em muitos destes grupos –, porque auferem baixos salários, para terem um pouco mais de rendimento ao fim do mês optarem por não fazer as contribuições à Segurança Social. Isto, dentro da lógica de que se tinha habitualmente emprego e, portanto, não se corria muito risco. O problema é que estes processos cumulativos de vulnerabilidade foram crescendo. Muitas destas pessoas caem no desemprego e têm dificuldade em acionar os subsídios de desemprego e os apoios habituais. Ou porque não descontaram, ou estavam em situação precária, ou porque foram enganados, o que também acontece.

Esta recuperação mais recente do emprego dos últimos anos, que criou mais oportunidades de trabalho nas áreas ligadas ao turismo e serviços, melhorou as condições para algumas destas pessoas?
R.M.C. – O que estava a acontecer é que o emprego estava a crescer de tal maneira, e o desemprego a diminuir, que mesmo com um perfil de menores qualificações e com idade mais avançada as pessoas estavam a entrar no mercado de trabalho. A questão que se levanta, e agora estamos a vê-lo de uma forma muito brutal, é que parte do emprego que foi criado foi emprego de natureza precária. Ou seja, com contratos a termo ou muitas vezes sem contrato. Nesses sectores ligados ao turismo as pessoas estavam até muitas vezes em situação informal. Num projeto que decorre deste, estávamos agora a fazer entrevistas a trabalhadores dessas áreas, com casos de trabalho completamente informal. Trabalhadores do tuk-tuk, por exemplo, ou aqueles que estão nas plataformas da tal gig economy de que se fala muito, com situações muito vulneráveis do ponto de vista contratual. O emprego que foi criado em muitos destes sectores relacionados com o turismo, mas não apenas, não era um emprego de qualidade. O que está a acontecer com a crise da pandemia é reflexo disso. No estudo identificamos esta ideia: há aqui um desemprego imediato que afetou, primeiramente, as pessoas que já estavam numa situação precária. Significa que vulnerabilidades anteriores se reforçaram com a crise e aqueles que conheceram o desemprego automaticamente, nos primeiros dias e semanas, foram as pessoas que estavam nesta situação. Não foram abarcadas pelo lay-off, e por outro lado nem sequer puderam acionar os apoios e subsídios habituais. Não são elegíveis. São pessoas que passam diretamente de uma situação de emprego desprotegido para a situação de desemprego desprotegido. Perdem rendimento e estão com uma grande dificuldade em encontrar alternativas. Ocorre nalgumas franjas do trabalho independente também, os falsos recibos verdes, e por aí fora.

De certa forma, antes da recuperação do emprego estas pessoas estavam invisíveis enquanto desempregadas, e agora voltam a essa condição de serem desempregados invisíveis?
R.M.C. – Neste momento estão ainda mais invisíveis dadas as características desta crise. Devido à questão do confinamento. Não têm expressão sequer física. A presença física que, infelizmente, os desempregados tinham noutros tempos, nas filas dos centros de emprego, da Segurança Social, pura e simplesmente desvaneceu-se do espaço da própria cidade, do espaço público. Os procedimentos com os serviços públicos passaram a ser mediados, fundamentalmente, a partir da Internet. É esta a resposta que devia ser dada, mas as próprias características da crise reforçam ainda mais invisibilidade.

Até há pouco tempo uma das discussões na agenda da Concertação Social era a questão da formação, não iniciada mas como objetivo…
R.M.C. – Essa é uma das questões que merece reflexão. Tivemos um programa, durante um determinado período, que foi o das Novas Oportunidades. Pode ter corrido melhor, pior, haver uma avaliação, mas de facto existia um programa que foi interrompido e que investia na formação ao longo da vida durante a crise anterior e período de austeridade. Não foi retomado, pelo menos, com a mesma envergadura e com a mesma ambição, num programa estruturado de formação profissional e de formação ao longo da vida. Está identificado há muito tempo em Portugal e é um dos grandes problemas que nós temos. Temos uma população empregada com níveis de idade intermédios, aquela população que está com mais de 45 anos, em que os níveis de escolaridade são ainda muito baixos comparando com outros países da Europa. Estamos a recuperar sobretudo na formação dos mais jovens, mas de facto uma parte considerável da população empregada tem ainda níveis de qualificação muito baixos. É algo que já vem muito de trás, fundamental, e em que era importante investir.

Ainda se irá a tempo de agarrar efetivamente estas gerações, sendo que o tempo corre, a demografia do mercado de trabalho muda e estas pessoas desaparecem?
R.M.C. – É o que tem acontecido. As pessoas vão para o desemprego e acabam por ser catalogadas, do ponto de vista estatístico, como inativos. Não devia acontecer. Temos um conjunto de pessoas aptas para trabalhar, com vontade de trabalhar, que valorizam muito o trabalho e com competências que demonstraram ao longo da sua vida, até com vontade de tirar cursos e formação desde que se concretizem em oportunidades de trabalho. Muitas vezes isso não acontecia. Tiravam-se cursos de formação sem retorno. É uma das críticas que surge também. O webdocumentário “Demasiado Novo para Ser Velho” é sobre pessoas que estão a ficar para trás, algumas delas interiorizaram que dificilmente regressam ao mercado de trabalho, mas com um potencial muito grande ainda do ponto de vista profissional. É algo que devia ser alterado, mas não sei se iremos a tempo, no contexto desta crise, para haver uma resposta a estas pessoas. É bastante preocupante.

Por outro lado, temos também a situação das gerações mais novas, que com a crise sofreram uma embate muito forte e tiveram de lidar com uma prevalência grande de vínculos precários no mercado de trabalho…
R.M.C. – Sabemos que a incidência da precariedade entre trabalhadores mais jovens é maior do que nas outras faixas etárias. É natural que sejam as pessoas mais precárias a sofrer primeiro o embate da crise. Por esta ordem de ideias, serão obviamente os mais jovens que estão em situação mais vulnerável. Não é exclusivo de Portugal. Também a própria Organização Internacional do Trabalho e outras organizações têm chamado a atenção para isso. Alguns indicadores já apontam para isso, ao nível por exemplo das perdas de rendimento. Alguns inquéritos têm demonstrado que na população mais jovem se identificam as maiores perdas de rendimento decorrentes da crise da covid-19. Estamos a falar de uma população jovem, qualificada, que estava a viver uma situação de precariedade que apesar de tudo permitia ter rendimentos, mesmo vivendo com alguma dificuldade, mas que agora se vê numa situação sem alternativa. Até a alternativa de emigrar, que sempre existia como opção. Nas entrevistas que fizemos também a jovens precários, num outro livro, “Retratos da Precariedade”, a emigração surgia como um cenário hipotético. Não é exclusivo dos jovens, mas sabemos que muitos emigraram não porque estavam desempregados, mas porque estavam numa situação de precariedade recorrente e sem grandes expetativas de carreira e aspirações. Foi muitas vezes o principal mote para emigrarem para outros países. A emigração – pelo menos, nestes próximos tempos – não é uma opção. Esta é uma crise generalizada, com impactos diferenciados nos vários países, e há uma mobilidade que só vai recuperar lentamente. O cenário da emigração não se põe. Do ponto de vista existencial, é bastante aflitivo perceber que se está a viver numa situação em que, por um lado, se deixou de ter rendimento, por outro lado há dificuldade de acionar os mecanismos habituais de proteção social como o subsídio de desemprego devido à condição precária que se tinha, e simultaneamente perceber que emigrar não é uma alternativa.

É angustiante. Há um confinamento das expetativas que é possível ter também?
R.M.C. – São múltiplos confinamentos que se cruzam. Se esta situação perdurar – e essa é que é a grande incógnita –, podem cavar muito fundo do pontos de vista económico, social, e também do ponto de vista da própria condição existencial e psicológica do indivíduo, atingindo a saúde mental. Já era um problema anterior e, neste momento, pode estar a agravar-se de uma forma exponencial.

– Neste primeiro momento da pandemia, houve uma conjunto de medidas extraordinárias introduzidas aos poucos, começando pelo lay-off simplificado e apoios à redução de atividade dos trabalhadores independentes, ainda que com críticas quanto à forma como foram implementadas. Neste momento está a ser discutido um segundo pacote de medidas para a retoma. Em termos de princípios, e das realidades do mercado de trabalho que agora ficam a descoberto, por onde devem seguir?
R.M.C. –. A questão é como se vai resolver estes problemas. Há várias questões. A primeira tem que ver com a identificação destes grupos mais vulneráveis. O facto de eles se tornarem invisíveis não quer dizer que não sejam um problema social e também um problema político. Estas pessoas precisam de uma resposta e ela não passa pelas políticas de apoio habitual. São pessoas muitas vezes de extrema situação de precariedade, vulnerabilidade, até de informalidade, e com uma incidência grande nos trabalhadores mais jovens. Tem de haver uma resposta política do ponto de vista da proteção social e do ponto de vista da transferência de rendimentos. É importante fazer a identificação destas situações e acionar mecanismos e políticas que deem uma resposta. É o princípio geral de ninguém ficar para trás e que devia nortear as políticas desde já. Depois há a questão do lay-off, saber até quando se prolonga. Obviamente, o país não tem capacidade financeira para que a situação se prolongue muito tempo. É insustentável. Mas pode prolongar-se mais, e não há dúvida de que o lay-off, apesar das suas limitações, significou um amortecedor. Estaríamos numa situação de maiores níveis de desemprego se não tivesse sido o recurso ao lay-off. Mas é preciso pensar no que vai acontecer a seguir. As empresas, apesar de terem recorrido ao lay-off vão conseguir ter sustentabilidade, manter os empregados? Deve haver a preocupação de pensar outro tipo de políticas que façam com que as empresas, já numa situação pós-lay-off, não caiam de um momento para o outro na insustentabilidade, tendo de fechar portas. Por outro lado, a ambição de médio-longo prazo deve ser a de aprender um pouco com o passado. É importante criar emprego, e vai ser um objetivo fundamental, mas sendo isso é necessário não é suficiente. É preciso criar emprego de qualidade, emprego que proteja as pessoas. Deve ser uma prioridade. Proteger o emprego é proteger a sociedade, e estamos a ver isso. Se tivéssemos uma sociedade em que as pessoas estivessem mais integradas no mercado de trabalho, mais enquadradas do ponto de vista laboral e da proteção social, o impacto da crise não seria tão forte. Teríamos mais capacidade de resistir. Não podemos continuar na situação de ir de crise em crise e, perante uma crise, perceber que há sectores que vão abaixo e nos quais as pessoas ficam de um momento para o outro sem nada. É bastante aflitivo. A recuperação anterior não foi acabada e algumas pessoas estavam ainda em situação bastante vulnerável em diferentes gerações. Se adotarmos este princípio, estamos a fazer com que as pessoas vivam melhor individualmente, nas suas famílias, mas ao fazermos isso estamos a fazer também com que a sociedade seja mais resistente.