20.5.20

Porajmos e a ciganofobia

Leonor Rosas, in Esquerda.net

A memória das pessoas ciganas exterminadas pelo regime nazi não deve ser uma memória congelada no século passado. Lembrar as vítimas deve implicar uma reflexão sobre como viveram e como resistiram à discriminação.

O termo “cigano” é utilizado para designar – de forma geral e muitas vezes preconceituosa – várias comunidades: Roma, Sinti e Kale. O termo “Roma” é o mais utilizado em organizações e movimentos antirracistas para designar as várias comunidades pois, a nível europeu, há muitas que não se auto identificam com o termo “cigano”.

Entre 1933 e 1945, a Alemanha nazi exterminou entre 250 mil e 500 mil pessoas Roma. O genocídio do povo Roma foi, durante décadas, invisibilizado, antes de ser incluído na memória do Holocausto, termo normalmente associado ao extermínio do povo Judeu. Ativistas e intelectuais ciganos procuraram termos para se referirem ao genocídio dos Roma. Provavelmente o mais conhecido é “Porajmos” – que significa “devorar” – mas é igualmente utilizado o termo “Samudaripen” que surgiu na Jugoslávia nos anos 1970 e que significa “assassinato de todos”. A designação varia entre comunidades e, de modo a percebermos a história de cada uma, é necessário adequar os conceitos.

Desde a segunda metade do século XIX que a política dos Estados europeus para com as comunidades Roma se tornou mais violenta, devido à disseminação de teorias de eugenia social. Apesar das tentativas de negociação com os Estados por parte de alguns membros da comunidade, esta permaneceu, em grande parte, excluída e marginalizada, vivendo nas periferias dos estados-nação europeus.

Na Alemanha, desde 1933, as pessoas ciganas foram classificadas como “vidas que não merecem ser vividas”. Nesse mesmo ano, o governo de Hitler começou a ordenar a prisão de todos os Roma que não tivessem local de residência oficial. Nos anos seguintes, num crescendo de violência, iniciou-se um processo de esterilização forçada das mulheres ciganas. Em 1934, a nacionalidade alemã foi-lhes retirada, permitindo a sua deportação e, simultaneamente, proibindo o casamento entre pessoas ciganas e outros nacionais alemães. Dois anos depois, milhares de Roma começaram a ser deportados para o campo de concentração de Dachau, onde eram esterilizados e assassinados. A partir de 1938, todas as pessoas ciganas que estivessem em condição de mendicidade seriam consideradas criminosas e deportadas para o campo de concentração de Buchenwald.

Durante a guerra, as comunidades ciganas do Leste da Europa foram colocadas em guetos (Varsóvia ou Lodz) e, mais tarde, exterminadas através do trabalho forçado e de execuções sumárias em Ravensbrück, Jasenovac, Dachau e Buchenwald ou em câmaras de gás em Auschwitz e Chelmno. Tal como no caso do povo judeu, a Alemanha nazi decretou o extermínio total do povo Roma e Sinti. O número total exato de vítimas ainda é uma incógnita. Estima-se que cerca de 30% da população Roma europeia tenha sido assassinada. A maior parte destas pessoas vivia nos territórios da Jugoslávia, da Roménia, da Polónia e da União Soviética.

No entanto, a ciganofobia – tal como o antissemitismo – não foi inventada pelo Nacional-Socialismo. Estes preconceitos racistas eram comuns na Europa do século XIX e XX. Além disso, as políticas de “limpeza racial” da sociedade alemã foram aplaudidas por cientistas de vários países ocidentais. Durante a Segunda Guerra, em vários países – como na Croácia ou na Roménia – foram milícias locais que se encarregaram do genocídio do povo Roma.
No rescaldo da Guerra, a consciencialização acerca do antissemitismo foi forte e o estudo e denúncia da Shoah disseminaram-se por todo o mundo. No entanto, a comunidade cigana, com menos influência e mais dispersa, viu o seu genocídio ser relegado para um segundo plano e com uma tendência para ser obnubilado. Os sobreviventes Roma não foram logo compensados pelas suas perdas ou reconhecidos nem serviram como testemunhas nos julgamentos de Nuremberga. Hoje, as comunidades Roma têm feito um grande esforço no sentido de preservar a memória das vítimas do Porajmos e de alertar para o perigo da ciganofobia.

Que estes 75 anos reforcem os direitos humanos e a luta antirracista e que a memória do povo Roma e Sinti assassinado seja uma ferramenta para construir um futuro em que tais atrocidades jamais se repetirão
Este mês, comemoramos 75 anos da derrota da Alemanha nazi, da Itália fascista, da Croácia Ustasha, do Estado Nacional Legionário Romeno e outros aliados do Eixo. Estes países foram os principais responsáveis pelo assassinato das centenas de milhares de pessoas ciganas durante a Segunda Guerra. No entanto, como sabemos, a ciganofobia e o racismo continuam bem vivos por toda a Europa e, igualmente, em Portugal. O rastilho para a violência à qual se pôs termo em 1945 é o racismo e a discriminação quotidiana que exclui comunidades e as procura desumanizar.

A 16 de Maio de 1944, quando as tropas SS fizeram a primeira tentativa de extermínio da “secção” Roma do campo de concentração de Auschwitz, vários presos organizaram-se, armaram-se com pedras e paus e construíram barricadas. Este dia ficou conhecido como o Dia da Resistência Roma, que é hoje celebrado por diversas comunidades e organizações.

A memória das pessoas ciganas exterminadas pelo regime nazi não deve ser uma memória congelada no século passado. Lembrar as vítimas deve implicar uma reflexão sobre como viveram e como resistiram à discriminação. Ativar a memória da violência política é um instrumento para construir um presente mais justo e igual, no qual estamos atentos ao surgimento de discursos ciganofóbicos – nomeadamente propostas de planos de confinamento especiais para pessoas de etnia cigana. Que estes 75 anos reforcem os direitos humanos e a luta antirracista e que a memória do povo Roma e Sinti assassinado seja uma ferramenta para construir um futuro em que tais atrocidades jamais se repetirão.