27.5.20

O que chega a julgamento ainda é “a ponta das pontas do icebergue”

Joana Gorjão Henriques, in Público on-line

Entre Setembro e Março, o PÚBLICO assistiu a vários julgamentos de violência doméstica. Nas próximas semanas publicamos detalhes sobre cada um. Especialistas alertam: o que chega a tribunal ainda é uma ínfima parte da realidade. Sistema coloca demasiada responsabilidade nas vítimas. Investigação e juízes deviam recolher e apreciar mais provas, além de testemunhos.

Margarida foi a tribunal pela segunda vez porque o marido, Alberto, octogenário, dizia frequentemente que a ia matar. Da primeira vez, o tribunal decidiu que o processo seria suspenso e Alberto teria uma segunda oportunidade. Mas reincidiu. Quando regressou ao tribunal, após novas queixas de Margarida, foi dado como demente, declarado inimputável e mandado de novo para casa.

Filipe, professor de Direito Penal numa universidade em Lisboa, nascido nos anos 70, é acusado de agredir uma antiga aluna, e já usou vários mecanismos que interromperam o julgamento; em tribunal, faz considerações sobre o que diz ser “‘nazismo’ de género”.

Rodrigo, nos seus 40 anos, tinha uma empresa que estoirou por causa do seu vício em cocaína; agrediu a mulher, chegou a apertar-lhe o pescoço, no dia do seu aniversário cuspiu-lhe na cara, deu-lhe um pontapé.

Rafael e Susana namoraram durante dois anos, mas ele não aceitou o fim da relação e passou a persegui-la. Fazia-lhe esperas à porta de casa e do trabalho, inundava-a de mensagens.
Mafalda é acusada de agredir física e psicologicamente a filha, adolescente menor, e o filho, com cerca de 20 anos à data do julgamento: expulsou-os de casa.
Todos estes nomes são fictícios, mas protagonizam histórias reais de violência doméstica que chegam aos tribunais. Pessoas de várias faixas etárias vão a julgamento como vítimas e agressores. Não têm um perfil socioeconómico, nem psicológico, não têm as mesmas profissões, nem tão-pouco formas idênticas de lidar com o problema. Disso mesmo iremos dar conta nas próximas semanas, numa série em cinco capítulos.

Nos últimos anos, surgiram várias campanhas contra a violência doméstica. O Governo implementou programas, formaram-se equipas especializadas. Há uma rede nacional de apoio às vítimas, gabinetes de atendimento nos departamentos de investigação e acção penal de algumas comarcas.

De 2018 para 2019 houve subidas significativas dos dados em várias frentes: as queixas à PSP e à GNR passaram de mais de 26 mil para quase 30 mil (mais 11,5%); o número de reclusos por este crime disparou 23,2%; o número de inquéritos abertos e de acusações pelo Ministério Público subiram (de 27.300 para 34.200, no caso dos processos, e de 3844 para 5234, nas acusações). Mas, apesar disso, a tendência geral continua a ser de casos arquivados. A taxa de não-condenação também é alta: entre 2012 a 2018 quase 80% dos inquéritos do MP tiveram como destino o arquivamento, a percentagem que chegou a acusação foi pouco superior a 16% e desses as taxas de condenação foram entre 56% e 58%.

Nas penas aplicadas, a regra continua a ser a pena de prisão suspensa: em 2018, por exemplo, correspondeu a 90% das condenações.

Esta “muito elevada” percentagem de inquéritos que “não conduzem ao exercício da acção penal” pelo MP é fruto “de uma insuficiente investigação das denúncias”, critica Rui do Carmo, coordenador da Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica — grupo multidisciplinar criado em 2017 que examina processos judiciais de homicídios em contexto de violência doméstica. Falta também “proactividade na recolha de prova dos factos, reduzida muitas vezes quase exclusivamente ao depoimento da vítima”, refere. Esta “incipiente investigação repercute-se, ainda, no resultado dos processos que seguem para a fase de julgamento, em que é muito elevada a percentagem dos arguidos absolvidos”.

Para o procurador, o mais importante neste momento é implementar o que ficou definido em Conselho de Ministros, em Agosto de 2019: a necessidade de existir um protocolo de actuação sobre a intervenção no momento de denúncia, de preservação e aquisição de prova, de protecção da vítima, de neutralização do agressor e de tudo o que se refere à intervenção policial nas 72h após a denúncia. “A agilização desse procedimento é fundamental.”
Na lista de prioridades do que se deveria mudar no sistema em Portugal, feita pelo relatório mais recente do Grevio (grupo de peritos do Conselho da Europa que avalia a aplicação da Convenção de Istambul para a prevenção da violência doméstica) afirma-se: é preciso acabar com entraves às denúncias, que as queixas se convertam em acusações, que as acusações resultem em condenações, e que, no final, haja uma punição correcta.

Ou seja, o sistema ainda está a falhar.
Vencer a barreira
Em 1995 — quando o sociólogo Manuel Lisboa coordenou o primeiro Inquérito Nacional sobre a Violência de Género — a percentagem de pessoas que ia à polícia denunciar era inferior a 1%; no segundo desses inquéritos, em 2007, essa percentagem subiu para 12%. Muito mudou, e muito mudaria se se voltasse a fazer esse inquérito agora. Mas o sociólogo não tem dúvidas: “O que chega a tribunal é a ponta das pontas do icebergue. Não podemos tirar grandes conclusões do que chega a julgamento. O que podemos analisar é que quem chega foi quem conseguiu vencer a barreira.”
Manuel Lisboa defende maior articulação entre os vários agentes que intervêm no processo. “Ainda há descoordenação. Não faz sentido que seja uma mulher vítima a bater às portas, o próprio sistema deveria estar organizado para facilitar. Outra dimensão é a celeridade dos processos: a partir do momento em que os casos são detectados, têm que ser investigados rapidamente e haver uma acção a todos os níveis — e isto até ao julgamento. As heroínas que conseguem furar estas dificuldades não podem ficar com as expectativas defraudadas.”

Também o director do Observatório Nacional de Violência e Género, Manuel Lisboa, fala sobretudo em mulheres porque, apesar de não se poder definir um perfil de vítimas ou agressores que estão no tribunal, a probabilidade de serem mulheres é muito maior.

Sublinha: a violência não se limita a insultos, implica ameaças e muitas vezes de morte. É verdade que a prova de violência psicológica é sempre mais difícil de obter, até porque “não deixa marcas” visíveis, sublinha. “Requer uma análise muito particular de outro tipo de indicadores que não são tão fáceis de interpretar”, continua.
A verdade é que há muito a melhorar: “Não é admissível que os femicídios que aconteçam em Portugal já tenham passado pelo sistema. O sistema tem que estar suficientemente afinado para que a grande maioria [das situações de risco] seja detectada.”

Portugal tem boas leis, defende, por outro lado, Elza Pais, deputada do PS que participou nos estudos sobre violência doméstica com Manuel Lisboa e foi secretária de Estado da Igualdade. “Não precisamos de mais...”, refere. Mas reconhece que há uma mudança a fazer: “Falta que esta cultura de quem decide seja efectivamente de impunidade e de tolerância zero.” Ou seja: “Quem decide deveria ter neutralidade de valores e aplicar a lei de forma objectiva. Mas sabemos que não é assim.”
Já muito se alterou, lembra. Um marco “radical” foi a mudança para crime público em 2000. “A partir do momento em que o crime é denunciado, a decisão tem que chegar a julgamento, mesmo que a vítima queira perdoar – e sabemos que muitas vezes a vítima quer perdoar. É por isso que o Estado tem obrigação de proteger, mesmo quando a pessoa não tem condições de o fazer.” Outra mensagem dada pelo facto de ser crime público: “Quando um de nós tem conhecimento deste crime, deve denunciá-lo.”

Vítima ainda tem de provar que foi agredida
Nos últimos anos tem-se assistido a uma maior “visibilidade das detenções” pelas polícias e isso “é importante e pode ter impacto”, sublinha Elisabete Brasil, advogada que trabalha com vítimas de violência doméstica há mais de duas décadas. “Mas o importante é saber o que aconteceu depois da detenção”, conclui a jurista que produziu o relatório do Observatório das Mulheres Assassinadas, da UMAR, fez investigação académica sobre o impacto das políticas públicas neste crime e fundou a FEM (Feministas em Movimento).

Quando os dados mostram que a diferença entre as denúncias e as condenações é muito grande, “as vítimas acham que não se faz justiça”. Surgiram vários instrumentos, acrescenta. Mas considera: “Quem está nos tribunais, quem assiste aos julgamentos, quem está no terreno e fala com as vítimas” percebe que “não temos um sistema de justiça com preparação para responder” às suas necessidades.


Elisabete Brasil contextualiza: “Uma situação de violência doméstica é destruidora. Muitas vezes estamos a falar de relações com muitos anos. Não é o mesmo que ser assaltada.” O testemunho na sala de audiências pode reavivar o trauma, e, por sua vez, isso pode “ter consequências nos relatos”: “É um crime em que há tudo menos distanciamento e as vítimas têm dificuldade em datar, precisar, lembrar. E não é porque estejam a mentir, é uma das consequências desse trauma.”

A verdade é que a violência contra as mulheres não desceu, afirma, e é frequente magistrados sem formação na área não saberem como fazer as perguntas. “Muitas mulheres dizem que se sentiam as arguidas no julgamento.” Há mesmo quem defenda tribunais especializados em violência doméstica.

Também aponta como uma das falhas do sistema judicial o facto de este estar demasiado centrado no testemunho da vítima, que tem de provar que foi agredida. Daí a importância de convocar para julgamento múltiplas entidades que lidam com estas situações. “A mulher vai a um hospital, a um centro de saúde… O testemunho destes técnicos era importante para juntar mais provas. É preciso valorizar o testemunho destes profissionais cuja função não é só atender, há perícias na criminologia sobre validação de testemunho que estão disponíveis em Portugal e podem apoiar o MP e o juiz.”

Rui do Carmo continua: a expectativa de que o depoimento da vítima “traga toda a prova” carrega-a, assim, “de toda a responsabilidade”. “Muitas vezes a vítima está de tal forma fragilizada que não tem condições de ter esse papel que lhe pretendem obrigar a ter”. Acontece também não querer prestar depoimento em tribunal, o que é um direito seu, “ou ter um depoimento com hesitações”. “O que não significa que não queira que o arguido seja punido.”

Que outros meios de prova deveriam, então, ser recolhidos? Rui do Carmo exemplifica: identificar pessoas que tenham conhecimento de episódios daquela relação; recolher informação sobre os conflitos através de outros serviços ou obter informação das comunicações electrónicas entre as pessoas envolvidas “em que muitas vezes estão relatos bem precisos do que ocorreu ou que vai ocorrer”. Aos polícias recomenda que, quando são chamados ao local, documentem todos os elementos que possam “indiciar a existência dos factos que foram denunciados, fotografando ou filmando a cena que encontraram, como se faz para acidentes de viação”.

Psicólogo forense, especializado em tratar agressores, Rui Abrunhosa Gonçalves reforça a necessidade de a justiça recorrer “sempre que possível a peritagem”, e alerta os magistrados para que “não se fiem” apenas “nas suas capacidades e convicções”. Até porque “os agressores têm tendência a minimizar as agressões e as vítimas, por vezes, a maximizar”. Conclui: “Os peritos ajudam a justiça a tomar decisões cada vez mais justas.”