22.5.20

A desproporcionalidade do impacto da covid-19: a pandemia e a fragilidade

in Plataforma das ONGD

Na altura em que o novo coronavírus se começava a propagar pelo mundo, ouvia-se frequentemente que todas as pessoas corriam o mesmo risco de serem infetadas e que, por isso, estávamos perante uma ameaça democrática. Contudo, por sabermos que o impacto da pandemia vai muito além da componente sanitária – a que camadas menos protegidas da sociedade estão indiscutivelmente mais expostas –, sabemos também que a situação que vivemos afeta mais uns/mas do que outros/as.

Quando as notícias sobre o surto provocado pelo novo coronavírus começaram a entrar nas nossas rotinas, dificilmente conseguiríamos imaginar que outra ameaça poderia colocar em risco a vida de todos/as de uma forma tão igualitária. Perante um vírus altamente contagioso, instalou-se a perceção de que esta seria uma batalha entre cada um/a de nós e a doença – à qual, teoricamente, todos/as estaríamos expostos/as em condições de igualdade. Contudo, e tal como alguns fenómenos que, entretanto, se fizeram notar indicam, há outros fatores que têm obrigatoriamente de ser considerados na avaliação do impacto da pandemia em diferentes estratos populacionais e em diferentes pontos do globo.

Na cidade norte-americana de Chicago, por exemplo, a maior parte das mortes provocadas pela covid-19 registaram-se no seio da comunidade afro-americana – apesar de esta comunidade representar apenas 30% da população da cidade. Ao mesmo tempo que a saúde das pessoas em situação de maior fragilidade socioeconómica é desproporcionalmente afetada pelo vírus, serão também estas pessoas que vão sentir (como já sentem) as consequências da desestabilização económica provocada pela implementação das medidas de contenção. Sabe-se, assim, que quanto menor for a proteção e o acesso a bens essenciais de determinadas camadas da população, maior será o impacto sentido nessas comunidades.

As notícias que vão surgindo demonstram que, inevitavelmente, o vírus tem um efeito muito concreto na vida das pessoas que, antes da pandemia, se encontravam já em situação de elevada vulnerabilidade. Uma projeção divulgada recentemente pelo Programa Alimentar das Nações Unidas (PAM) coloca a possibilidade de se vir a verificar proximamente uma duplicação no número de pessoas em situação de fome extrema. A isso se deve o facto de camadas significativas da população já enfrentarem situações de vulnerabilidade extrema que a quebra nas cadeias de distribuição e a redução nos fundos disponíveis para fazer face à pandemia vieram exacerbar. A este juntam-se outros problemas, como o potencial para um agravamento da violência contra as mulheres e da precariedade em que vivem muitos/as migrantes. No caso das migrações, milhares de pessoas que se encontram a viver em campos altamente sobrelotados e em condições francamente precárias, veem agora uma nova ameaça aprofundar a situação difícil em que se encontram. O potencial de catástrofe desta situação é enorme tendo em conta a elevada densidade populacional verificada nestes campos – estima-se que no campo grego de Moria habitem 204 migrantes por cada 1000m² –, tendo já sido confirmados casos de infeção em vários destes locais.

Na ausência de uma resposta que não tenha em conta o enquadramento estrutural sob o qual funciona a nossa sociedade, é difícil conceber como poderão diminuir as desigualdades entre países e pessoas. Os efeitos da pandemia começam, aliás, a revelar-se: tendo em conta as dinâmicas que se fazem sentir desde o início da crise, o Banco Mundial espera uma queda de cerca de 20% nas remessas de imigrantes africanos/as para os seus países de origem. Isto representa um abalo significativo em fluxos financeiros que, anualmente, ultrapassam o montante de Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) direcionado ao continente africano. Perante a situação em que vivemos, os Países Menos Avançados (PMA) são aqueles que veem a sua capacidade de obter financiamento mais dificultada – a crise atual registou já o maior fluxo de sempre de retirada de capital dos PMA. Neste sentido, um relatório publicado esta semana pela Oxfam, sugere um conjunto de medidas que os países doadores de APD devem implementar para dar resposta ao problema, calculando que, apesar de representar um investimento sem precedentes, a mobilização do financiamento necessário para auxiliar os países mais expostos no combate às consequências da pandemia “representa apenas 6% do que os países mais ricos do mundo prometeram para os pacotes de estímulo às suas economias”.

O início do ano de 2020 foi encarado como um momento vital para pôr em marcha medidas que permitissem, no espaço de dez anos, realizar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Os números da pobreza já apontavam para uma diminuição, mas as desigualdades registavam uma tendência de aprofundamento preocupante. Depois da pandemia, e caso não se encontrem as respostas adequadas, os retrocessos que os primeiros meses de covid-19 trouxeram podem tornar-se definitivos e ainda mais difíceis de reverter. Por tudo isto, sabemos que, apesar de ameaçar diretamente a saúde de todos/as, a propagação da pandemia e a consequente necessidade de implementar medidas que a contenham, a situação que vivemos afeta mais uns/mas do que outros/as. Num momento difícil para todos/as, o sucesso do combate à pandemia e aos seus efeitos dependerá, seguramente, dos níveis de solidariedade que os Estados, as organizações internacionais, e cada um/a de nós for capaz de integrar na resposta à covid-19.

Fonte: Vários