Bernardo Mendonça, Hugo Franco e Raquel Moleiro, in Expresso
Não é preciso apanhar o novo coronavírus para sofrer os seus efeitos. A crise económica alastra, com desemprego e fome
Todos os dias, pouco depois da hora do almoço, o país fica a saber quantos portugueses foram apanhados pelo novo coronavírus e quantos não resistiram ao embate. Alinhados, e em respeito pelo distanciamento obrigatório, governantes e especialistas atualizam o retrato sanitário da luta: contabilizam os casos ativos, subtraem os curados, somam os confinados, exibem o gráfico de pico crescente, as várias velocidades do país. Mas existe um lado da pandemia que fica de fora das conferências da DGS. Para lá do campo de batalha hospitalar, há toda uma outra estatística engordada pela progressão da covid-19 que reflete a onda de impacto, os danos colaterais que nem máscaras ou fatos integrais de proteção individual conseguem travar. Aqui, as vítimas não têm tosse, febre ou ausência de olfato — têm fome, frio, a cabeça em água para arranjar maneira de pagar as contas, a renda, as dívidas à banca (as moratórias não duram para sempre — ver caixa). Aqui a doença é a crise provocada pela doença.
O vírus já contaminou 161.350 portugueses (67 mil ativos) — a queda económica consequente tirou o emprego, e o chão, a 404 mil. E afundou as contas nacionais em 8,1%, diz o Banco de Portugal, ou mesmo 9,3%, previu na passada quinta-feira a Comissão Europeia.
A restauração foi dos sectores mais atingidos, alvo de sucessivas medidas que fecharam os estabelecimentos ao público, reduziram a lotação, limitaram os convivas, encurtaram os horários. O Mnham Mnham, de Edgar Abreu, que servia 30 quilos de cozido por dia, arrumou de vez os pratos em setembro, com um passivo de €20 mil. Está para trespasse, na linha de Sintra, e longe de estar sozinho. Esta semana, a AHRESP, associação que representa o sector, revelou que 43% dos restaurantes ponderam abrir insolvência, 23% não vão conseguir manter todo o pessoal até ao fim do ano e 14% não pagaram os salários de outubro.
As discotecas e os bares dançantes nem chegaram a reabrir. Desde março que o 5A Club, de Licínio Cordeiro, no Príncipe Real (Lisboa), encerrou a pista e as portas ao espaço onde investiu todas as economias. Há uma semana, em desespero, mudou horários e clientela: é agora uma pastelaria. Outros há que viraram restaurantes. A Associação Nacional de Discotecas assume que 80% do negócio da noite vai morrer em 2020.
Mas não é só a desoras que as ruas se esvaziam. Esta semana Portugal foi eleito pelo quarto ano consecutivo como o melhor destino da Europa nos World Travel Awards, mas é reconhecimento sem usufruto. Não há turistas para festejar nem para entrar no tuk-tuk de Sérgio Lucas, equipado com selo “clean&safe”. Os números explicam os seis lugares vazios: desde o início do ano até ao fim de agosto, menos 8 milhões de turistas estrangeiros visitaram o país e deixaram por gastar €7,1 mil milhões; a hotelaria regista uma descida de 40 milhões de dormidas e €3600 milhões perdidos. Em setembro, 25% dos hotéis não abriram portas.
Sérgio fazia 300 euros por dia, agora nem a eletricidade consegue pagar. Vive de apoios sociais, tal como o fadista Paulo Bragança. O cancelamento da quase totalidade dos espetáculos deixou o cantor “sem nadinha”. Atualmente vive sem luz — o frigorífico virou despensa — e com um processo de despejo por não pagar a renda.
O impacto da pandemia no sector cultural foi violento. A GDA, que faz a gestão dos direitos dos artistas, criou um Plano de Emergência com um valor total de um milhão de euros, distribuído através do Fundo de Solidariedade com a Cultura (a que concorreram 1900 profissionais) e de um cartão de compras, com €200 por mês por pessoa, destinado à aquisição de bens essenciais — alimentou até agora 1037 artistas, incluindo a produtora Ana Rocha, que a pandemia deixou “sem saber como sobreviver”.
Também a União Audiovisual (UA), sob o lema “ninguém fica para trás”, garante, a cada três semanas, cabazes alimentares a 320 agregados do sector artístico. É daqui que vem a única comida que Paulo Bragança tem em casa. “O número de pessoas que nos procuram tem aumentado e com toda a certeza haverá mais uma grande subida. Há muitos profissionais a passar por grandes dificuldades”, lamenta Inês Sales, voluntária da UA.
Na Rede de Emergência Alimentar, onde se sente o pulso às carências nacionais, os pedidos de apoio também já voltaram a subir desde o início de setembro, depois de uma acalmia no verão. Isabel Jonet explica que não se voltou ao pico de abril, quando todos os dias chegavam 353 novos pedidos de ajuda (antes da covid-19 pandemia eram 50 mensais), mas está apreensiva com os 52, 53 que lhe ‘batem à porta’ diariamente. “Nesta segunda onda houve uma mudança de perfil. Já não é a classe média apanhada desprevenida pela cessação total dos rendimentos. São os mais pobres, muitos imigrantes, muitas mulheres brasileiras com filhos pequenos, que vivem em quartos de apartamentos partilhados, que tinham dois empregos, e bastou-lhes perder um... Não têm poupanças, investiram tudo no novo país”, explica.
No início de novembro, a rede, criada em março para responder à pandemia, apoia com alimentos 61.898 pessoas, a que se juntam as 380 mil que eram já ajudadas pelos Bancos Alimentares. Já foram distribuídas mais de 1800 toneladas que tiveram de ser compradas, uma vez que não se realizam as campanhas nos supermercados. “Faz lembrar a crise de 2009”, recorda Isabel Jonet. “Mas há aqui uma diferença grande. Quem fica desempregado agora não pode sequer emigrar, porque a pandemia e a crise são mundiais. Está preso a uma miséria sem perspetiva de nada melhor.”
COM CÁTIA MATEUS, DIOGO CAVALEIRO E SÓNIA LOURENÇO
MEDIDAS E INDICADORES
MORATÓRIAS
O Governo criou, em março, uma moratória que permitia, a quem a solicitasse, a interrupção do pagamento dos créditos, a que se juntaram moratórias privadas da banca e de sociedades de crédito ao consumo. A maior parte vigorava até setembro, mas foi estendida mais um ano. Contudo, grandes entidades do crédito ao consumo (Cetelem, Cofidis e Oney) não aceitaram a extensão do prazo. Até setembro, os bancos concederam moratórias a mais de 751 mil empréstimos, sendo que 42% são créditos à habitação, 29% ao consumo e 29% a empresas. Estão sob moratórias €44 mil milhões de euros em créditos. Já não é possível, porém, solicitar novas ‘suspensões’ ao abrigo destes regimes. Ou seja, o balão de oxigénio já não pode chegar a mais famílias e empresas. Desde março, e até 30 de setembro, chegaram à Deco 14.400 pedidos de aconselhamento financeiro.
DESEMPREGO
O efeito da pandemia na taxa de desemprego não foi imediato, mas a partir de junho iniciou uma trajetória de subida, chegando aos 8,1% em agosto, e só foi interrompida em setembro (descida para 7,7%). Os economistas alertam, porém, que deve ser sol de pouca dura, esperando novos agravamentos a partir de outubro, porque uma parte significativa dos trabalhadores ainda têm os despedimentos blindados pelas medidas do Governo. Sete meses de pandemia levaram o número de inscritos nos centros de emprego a ultrapassar os 410 mil em setembro. Desde o início de 2018 que não havia tantos inscritos: são mais 108.892 desempregados (36,1%) do que em setembro de 2019, 95 mil dos quais contabilizados desde fevereiro, último mês livre dos efeitos da pandemia.
DESPEDIMENTOS COLETIVOS
É um dos indicadores sobre o mercado de trabalho a que os especialistas estão mais atentos. Com a pandemia a colocar muitas empresas em situação crítica, o risco dos despedimentos coletivos dispararem é muito elevado. Contudo, os números até agora mostram uma subida muito limitada quer de empresas quer de trabalhadores abrangidos. Depois dos picos atingidos em março e em maio, o indicador tem estado em queda desde junho. Um sinal de que as medidas de apoio públicas ao emprego, seja o lay-off simplificado ou os mecanismos que o substituíram — e que implicam uma proibição dos despedimentos coletivos — têm ajudado a evitar uma degradação mais grave do mercado de trabalho.
LAY-OFF SIMPLIFICADO
Este mecanismo, inspirado no tradicional lay-off previsto no Código do Trabalho mas com regras mais simples, abrangeu cerca de 115 mil empresas, entre março e final de julho, blindando do despedimento mais de 1,3 milhões de trabalhadores. A medida terminou para a generalidade das empresas em julho, mas o Governo lançou um novo pacote de apoios que continuam a limitar os despedimentos, ajudando a explicar por que razão os despedimentos coletivos ainda não aumentaram exponencialmente e a subida da taxa de desemprego permanece contida.
RENDIMENTO SOCIAL DE INSERÇÃO
Muitos dos trabalhadores informais ou independentes, que se viram de súbito sem rendimentos e sem acesso a regimes de proteção social, foram encaminhados para o RSI. Entre março e setembro, os beneficiários aumentaram em mais de 11 mil. Desde 2016 que o universo de beneficiários de RSI não superava a fasquia dos 211 mil e o recurso a este apoio estava mesmo em queda desde 2018.