Ana Cristina Pereira (texto) e Paulo Pimenta (fotografia), in Público on-line
O recolher obrigatório acautela o apoio às pessoas sem abrigo, que podem circular para ir buscar comida ou outros bens essenciais, mas dificulta os expedientes para angariar dinheiro e matar a ressaca.
O metro sai da estação, veloz. O tempo começa a contar. Tânia acelera pelo passeio estreito que ladeia a linha, cruza-a, escala o muro de dois metros e salta-o no bocadinho em que o arame farpado se interrompe. Tudo depressa, antes que o metro volte a passar. Do outro lado do muro, sente-se segura. “É uma aventura!”
Não a inquieta a ordem de recolher obrigatório de segunda a sexta a partir das 23h. Naquela fábrica devoluta, a polícia não passa. Pode dormir em paz com o namorado na estrutura de ferro e pano que armou a um canto. Naquele espaço, protegido por um trio de guarda-sóis, recriou uma sala de estar e um quarto de dormir.
Ao fim-de-semana, com o recolher obrigatório que vai das 13h às 5h, é outra história. “A pessoa não pode sair e vai levar mais vezes com as autoridades, não é?”, começa por dizer. “A polícia abordar-me, há sempre complicações. Não tenho nada a temer, mas é sempre chato. O pessoal tem de se fazer à vida para comer, para isto, para aquilo.”
Saltar o muro PAULO PIMENTA
Não é pelo recolher obrigatório que as pessoas sem-abrigo vão ficar sem comida ou cobertores. Nas excepções à proibição de circular cabem as deslocações de profissionais e voluntários para prestar assistência a grupos vulneráveis. E as pessoas sem-abrigo estão incluídas nesse vasto grupo, explica Henrique Joaquim, gestor da Estratégia Nacional de Integração dos Sem-abrigo.
Primeira noite, à porta do restaurante
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Na segunda-feira, dia 9, quando entrou em vigor o novo estado de emergência, a incerteza quase se podia apalpar no centro do Porto. Homens e mulheres paravam à porta do mais antigo restaurante solidário, numa rua inclinada da freguesia da Sé, à espera de vez para recolher o jantar. Antes da pandemia, jantavam lá dentro, a uma mesa, com pratos e talheres. Agora, a comida é para levar. E não inclui sopa, que a sopa entorna, suja o saco de papel, rompe-o.
“É um bocadinho injusto”, comentava um homem com duas voluntárias da Grupo de Acção Social do Porto, Olga Morais e Vânia Sousa, que ali estavam a oferecer algum conforto emocional. “É injusto para muita gente. Muita gente é sem-abrigo. Os sem-abrigo não têm onde se recolher. Não têm casa. Não se vão meter num buraco.”
O homem que assim falava chama-se Carlos. Acabava de completar 65 anos. Estava para ver como reagiria a polícia às suas deambulações pela cidade. Durante a semana, às 23h já estaria a dormir num estacionamento ali perto, na Rua da Alegria. Ao fim-de-semana, pelas 13h estaria de olhos bem abertos. “Não sei… Tenho a minha amiga para me acolher. Se não for a minha amiga, estou tramado.”
Sabia que havia cada vez mais infectados com covid-19, cada vez mais internados nos cuidados intensivos, cada vez mais mortos. Compreendia que era preciso pôr um fim a essa escalada, mas sentia-se injustiçado. “Não tenho culpa que outros andem de noite. Se há ajuntamentos de madrugada, não tenho culpa.”
Natália Coutinho, coordenadora da Centro de Apoio aos Sem Abrigo (CASA) do Porto, também estava preocupada. Os dois restaurantes solidários para pessoas em situação de exclusão funcionam todos os dias das 20h às 22h. Quatro dias por semana, uma equipa de voluntários faz alguma ronda pela cidade a distribuir refeições e acaba depois das 23h. “Da nossa parte, é pacífico, temos uma declaração para apresentar”, dizia. “Vamos tentar perceber se a policia deixa passar os utentes, se não deixa.” Uns dormem perto, outros atravessam a cidade ou cruzam as linhas imaginárias que separam municípios.
Henrique Joaquim não via razões para barrar as pessoas carenciadas, incluindo as que estão sem abrigo, em busca de refeições. Todos se podem deslocar para ir buscar comida ou medicamentos ou outros bens essenciais. “Isso não significa que não possa haver uma ou outra situação esporádica, que se resolve na hora”, comentava. “Na primeira vaga, as pessoas tinham como obrigatoriedade estar no seu domicilio. As forças de segurança tiveram uma abordagem que foi nos sentido de apoio pedagógico com as pessoas sem abrigo. À partida, nada indica que agora vão ter uma postura diferente.”
A direcção nacional da Polícia de Segurança Pública, mais presente nas zonas urbanas, quis garantir que as mesmas regras se aplicavam nos concelhos de maior risco. “As polícias saberão conduzir cabalmente, de forma sustentada na lei e com bom senso, as diversas situações com que se deparem”, declarou o porta-voz nacional, Nuno Carocha. “No caso dos sem-abrigo, tal como é prática habitual, sinalizaremos essas situações às instituições de apoio, no sentido de contribuir para a resolução da situação de debilidade, sempre que possível, a longo prazo, e não só pontualmente.”
Um dos três sem-abrigo a dormir numa lateral do Teatro Nacional de São João. PAULO PIMENTA
Segunda noite, na boca do tráfico
À terça-feira, a equipa de voluntários da CASA pára na rua que liga o Bairro Pinheiro Torres e o Bairro da Pasteleira, ponto nevrálgico do tráfico de heroína e cocaína na Área Metropolitana do Porto. Naquela noite, à mesma hora, noutro lado do passeio, pára a equipa técnica de redução de riscos da Médicos do Mundo.
Todos pareciam conhecer a regras de distanciamento físico, mas amiúde a fila, que se fazia larga, irregular, transformava-se num amontoado. Queriam kits com todo o material de injecção (duas seringas, dois toalhetes, duas ampolas de água bidestilada, duas carteiras com ácido cítrico, dois filtros, dois recipientes), duas máscaras cirúrgicas, papel de alumínio, preservativos. Um ou outro não trazia máscara.
Restaurante que apoia integração dos sem-abrigo reabre com take-away e entregas
Entre os materiais de redução de riscos, satisfaziam alguns pedidos de garrafas de água ou medicamentos para dor, febre e inflamação. A enfermeira Sílvia Teixeira tivera de fazer um penso logo no início da ronda, na Rua Escura, no Bairro da Sé. Ali, a educadora social Cristina Costa saía da carrinha para ouvir um homem: queria passar a tomar metadona com a equipa móvel de Espinho ao invés da de São João da Madeira e pedia-lhe que contactasse a entidade competente para ser atendido.
Aquela equipa faz dois percursos diários de segunda a sexta. No mês passado, distribuiu 1453 kits, num total de 642 contactos, 358 dos quais utentes. Atirando o fim do percurso nocturno das 24h para as 22h30 para não entrar no recolher obrigatório, dispõe de menos tempo para conversar. A máscara também cria distância.
A voluntária Mafalda Paquete gostaria de ter mais tempo para dedicar a cada um. “Tinha de ser das 7h às 19h”, sorria aquela estudante de Medicina. Conhece a maior parte das pessoas que se aproximam daquela carrinha branca, algumas com sistemas imunitários enfraquecidos, doenças sobrepostas. “Infelizmente, acho que as pessoas que ajudamos têm problemas maiores do que a pandemia.”
Naquela noite, os voluntários da CASA prosseguiram a distribuição de comida nas ruas do Porto, entrando no horário abrangido pelo recolher obrigatório. Não houve incidentes com as autoridades. Na quinta-feira voltaram a fazê-lo sem incidentes. E na sexta.
Quarta noite, debaixo da ponte
Na quinta-feira à noite, um homem tentava não tremer debaixo da Ponte da Arrábida. “Aqui estou”, dizia, deitado na margem da via, sem passeio nem passadeira, envolto num cobertor que se confunde com as folhas que cobrem o chão. “Tenho receio de ir para um sítio onde há pessoas a passar. Há pessoas que têm maldade. Fazem mal. Aí não quero estar. Mais quero estar sozinho. Aqui ninguém pára. O barulho que ouço é o dos carros.”
Paulo ainda não sabia como lidar com o recolher obrigatório ao fim-de-semana a partir das 13h. “Para nós, já viu? Não temos nada. Onde é que a gente vai buscar um pão?” Passa horas junto a um supermercado ali próximo. De vez em quando, lá passa alguém que lhe dá uma banana, uma maçã, um pacote de leite achocolatado, um pão ou uma moeda. Tendo dois euros e meio pode comprar uma dose que já nem é bem heroína, é uma mistura de heroína com outras substâncias, “é medicação”.
Conta 51 anos, os últimos oito aos caídos. “A pior desgraça que fiz na minha vida foi meter-me nisto.” Tem duas filhas e nenhum contacto com elas. “Aos princípios, prontos. Depois, uma pessoa anda mais suja…. Tinha receio delas me verem com as colegas e as colegas falarem delas. Fugia. Se as visse, fugia para não as envergonhar.” Tem irmãs e uma até o deixava ficar numa garagem, mas lá na terra, no Marco de Canaveses, era mais difícil sossegar a ressaca. O preço da droga é mais alto e o grupo de potenciais doadores menor. “É uma tristeza. É doloroso isto. Uma pessoa não… só quem vive.”
Rui Salvador, educador de pares da Agência Piaget para o Desenvolvimento, membro da CASO – Consumidores Associados Sobrevivem Organizados e voluntário da Saber Compreender, ouvia-o a prometia voltar durante o dia, numa das suas folgas. Se não estivesse tão isolado, sofreria menos: uma equipa de rua da Norte Vida, que administra um programa de metadona, pára ali perto todos os dias.
Debaixo daquela ponte, com os carros a passar a grande velocidade, o frio tornava-se mais cortante. E as palavras de Tânia, noutra parte da cidade, faziam mais sentido: “Há quem esteja pior. Estou numa área fechada. Não estou tão sujeita a ser abordada. Mesmo em questões de frio, chuva, tudo. Aqui, vou tendo para me agasalhar.”
Na sua salinha, uma dezena de cadeiras de plástico indica que há quem ali venha consumir. Tânia não se injecta, fuma, mas guarda as seringas dos outros e troca-as por kits quando nas proximidades passam as equipas de rua. Quem se serve daquela espécie de sala de chuto dá-lhe uma pedrinha uma vez ou outra e isso é que a vai ajudando a matar a ressaca. Isso e a sucata que apanha com o companheiro.
Com o fim-de-semana do recolher obrigatório a aproximar-se, perguntava-se se teria mais gente, como antes da pandemia: “Não sei se o pessoal que está na rua vai optar por passar o tempo aqui. Se optar, vou ter de arranjar o espaço para terem minimamente o cuidado de ficarem mais afastados uns dos outros.”
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Adivinhava ressacas. Bastava-lhe pensar nos dois rapazes que ali moram, um dentro de uma tenda, outro sem qualquer protecção em redor, apenas com cobertores por baixo e por cima. Trabalham ambos como vigias para um traficante. “A partir das 13h, não se pode andar na rua, vai fechar, não é? Durante a tarde vai ser complicado tirarem pare eles. Depois é estarem aqui. Não têm nada para se distraírem.”
Gestor nacional está a aferir onde é preciso criar estruturas de acolhimento
Ninguém sabe ao certo quantas pessoas estão agora a dormir em entradas de prédios ou vãos de escadas, debaixo de pontes ou viadutos, em carros degradados ou casas devolutas. Segundo o gestor da estratégia nacional, Henrique Joaquim, a contagem está a ser feita pelos Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA).
A contagem de 2019 deve ser divulgada por estes dias, mas está desactualizada. “O contexto não é como era até Março”, recorda. “Há um aumento na procura de refeições, o que não quer dizer que haja mais pessoas em situação de sem-abrigo.”
Muitas das 21 estruturas de acolhimento criadas na primeira vaga de covid-19 tiveram de ser desmanteladas por funcionarem em pavilhões escolares. Henrique Joaquim está a aferir com os NPISA onde é preciso encontrar novas soluções, agora que a segunda vaga se revela maior do que a primeira.
Os protocolos para programas de habitação permanente devem ser assinados até ao final do ano. Para já, segundo explicou, estão a funcionar os apartamentos partilhados no Porto e o housing first em Leiria. Municípios que nunca tiveram respostas para pessoas em situação de sem-abrigo, como Vila Nova de Gaia, devem agora avançar com os dois programas.
Estas respostas, que devem abranger cerca de 580 pessoas, não chegam. A ministra do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, Ana Godinho, já disse que no próximo ano a resposta deverá ser alargada para mais 600 pessoas. E que a tutela está a preparar um programa no âmbito do Mercado Social de Emprego. A.C.P.