8.2.21

Amnistias fiscais desvendam 6000 milhões ocultados por 3600 contribuintes

Pedro Crisóstomo, in Público on-line

Inspeccionados pelo fisco justificaram dinheiro escondido no estrangeiro com a Revolução do 25 de Abril, heranças ou actividades no exterior. Cerca de 190 contribuintes com fortuna aderiram. Regimes permitiram escapar de infracções.

As controversas amnistias fiscais lançadas pelos Governos de José Sócrates e Pedro Passos Coelho permitiram a 3592 contribuintes legalizar junto do fisco 6000 milhões de euros escondidos no estrangeiro, ficando a salvo de infracções criminais e beneficiando de convidativas taxas de regularização (2,5%, 5% ou 7,5%), indica um relatório que a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) entregou esta semana no Parlamento.

Como todo o processo de regularização decorreu à margem da administração fiscal — não por vontade própria, mas por imposição legal —, durante anos o fisco não conhecia a lista dos contribuintes que aderiram aos regimes excepcionais de regularização tributária (RERT). De resto, ainda só tinha descoberto cerca de mil casos, por outras razões.

Só em Fevereiro de 2019, com uma mudança legal, é que passou a ser a depositária das declarações originais dantes guardadas no Banco de Portugal, o que lhe permitiu começar a fazer uma fiscalização das declarações dos RERT e fazer chegar ao Parlamento um relatório, ainda provisório, sobre os esquemas de planeamento tributário relacionados com o dinheiro ocultado.

O primeiro RERT, criado em 2005 no primeiro Governo de Sócrates, contou com 1037 adesões. O segundo, lançado durante a crise económica, atraiu 949 contribuintes; o terceiro, desenhado durante a presença da troika pelo executivo de Passos, foi o que contou com mais adesões (1851).

Ao todo, o fisco ficou agora a saber que houve 3837 contribuintes a aderir a estes programas (aos quais estão associadas 6500 declarações de regularização). Houve quem apresentasse quatro, cinco, seis ou mesmo mais declarações.

Como alguns contribuintes aderiram a mais do que um RERT, o número exacto de amnistiados é de 3592, esclareceu ao PÚBLICO o Ministério das Finanças. A maior parte dos tais 3837 casos (contagem que inclui a repetição de aderentes reincidentes) são singulares (3814 pessoas). Mas também aderiram 20 heranças indivisas e três empresas.

É a primeira vez que o Parlamento e a sociedade portuguesa, à boleia deste relatório do fisco, ficam a conhecer dados tão pormenorizados sobre estes regimes.

A amnistia de 2005 permitiu regularizar perto de mil milhões de euros até aí não declarados em Portugal. Os contribuintes pagaram uma taxa de apenas 5% (ou ainda mais baixa, de 2,5%, se o valor fosse investido em dívida pública) e o Estado obteve uma receita de 43,4 milhões de euros.

Cinco anos depois, com um novo RERT, o valor regularizado foi ainda maior: superou os 1600 milhões de euros. Resultado em receita: 83 milhões.

O último RERT — em que a taxa de regularização era de 7,5%, mas os cidadãos já não tinham de repatriar o património para Portugal — o programa garantiu a legalização de cerca de 3400 milhões. Para o Estado: uma receita de 258 milhões.
Razões para esconder

A partir do momento em que o fisco teve acesso às fichas de regularização, pôde começar a traçar matrizes de risco e a pedir esclarecimentos, mesmo que, por lei, os contribuintes já não possam ser responsabilizados pelas infracções tributárias associadas aos montantes regularizados.

O relatório do fisco revela algumas das justificações apresentadas pelos contribuintes quando foram chamados a esclarecer determinadas operações. Para já, o fisco obteve 49 respostas. É um trabalho para continuar.

São distintos os argumentos: há quem afirme que os valores resultaram da actividade desenvolvida em Portugal ou no estrangeiro (razão invocada em 19 respostas), há quem diga que o montante escondido veio de uma herança (dez respostas) ou que foi fruto de “doações” (uma pessoa apresentou esse argumento).

Há respostas que fazem a fita do tempo recuar várias décadas: em nove casos, os contribuintes alegaram que o património estava fora “na sequência da ocorrência” da Revolução do 25 de Abril de 1974 — uma referência implícita ao Processo Revolucionário em Curso (PREC) que se seguiu, embora não se saiba por que razão a ocultação durou tantos anos, até 2004, 2009 ou 2010.

Também houve quem alegasse desconhecer os “factos subjacentes ao RERT” (aconteceu num caso); um contribuinte invocou que o pedido do fisco era ilegal/inconstitucional; três disseram não estar obrigados a prestar esclarecimentos; três simplesmente não esclareceram; e em dois casos não se sabe a origem das aplicações financeiras.
As maiores fortunas

Além da regularização dos capitais ocultados, os RERT permitiram aos contribuintes passar um pano sobre as obrigações tributárias e a responsabilidade pelas infracções tributárias associadas às condutas ilícitas praticadas nas operações e na ocultação dos valores (como depósitos, partes de capital, seguros de vida, fundos de investimento e outros valores mobiliários).

As investigações judiciais dos casos BES, EDP ou Operação Marquês vieram a revelar que personalidades com responsabilidades públicas e empresariais de topo no país usaram os RERT — caso de Ricardo Salgado, por exemplo. Mas o relatório do fisco indicia que a ocultação não aconteceu só ente grandes fortunas.

Embora o relatório não destrince o universo dos amnistiados por escalões de rendimento e património, revela que, dos 3600 aderentes, 188 são grandes contribuintes (ou seja, pessoas com mais de 750 mil euros de rendimento anual ou um património imobiliário ou financeiro superior a cinco milhões de euros). Sobre os restantes, não se sabe qual a sua capacidade contributiva.

Ao todo, o núcleo dos grandes contribuintes aproveitou os RERT para legalizar 853 milhões de euros, isto é, representou 14% do total (pagaram 63 milhões).

Apesar de a tributação dever ter em conta a capacidade contributiva dos contribuintes, os RERT permitiram que os valores fossem regularizados a troco de uma taxa inferior à que seria devida se o rendimento ou o património tivesse sido declarado no tempo certo.

A própria Comissão Europeia chegou a pronunciar-se sobre esses impactos em 2012. Ao ser confrontada pela então eurodeputada Ana Gomes sobre uma alegada violação do princípio da igualdade, alertou para dois prismas: por um lado, lembrando o facto de existir uma regularização; por outro, reconhecendo que o objectivo da obtenção da receita não deveria ser visto sozinho, mas ponderado com outros factores “menos positivos, como por exemplo o facto de a concessão de benefícios fiscais aos autores de fraudes desagradar aos contribuintes cumpridores e o facto de essas amnistias poderem reduzir no futuro o incentivo ao cumprimento da legislação fiscal”.

Poupança por calcular

O relatório do fisco não apresenta um cálculo sobre quanto é que os amnistiados conseguiram poupar em IRS comparando com o valor que teriam pago se tivessem declarado o património em condições normais. A AT diz que as declarações não permitem validar a origem dos elementos patrimoniais e o momento em que as pessoas receberam os valores, uma condição relevante para imaginar como seriam tributados.

“Ainda que se pudesse presumir, num exercício hipotético, que os elementos patrimoniais declarados preencheriam as normas de incidência do IRS e seriam tributados nesta sede”, seria preciso saber em que circunstâncias isso ocorreria, o que implicaria fazer simulações individuais, por exemplo, “a partir das declarações de rendimento eventualmente já entregues” e assumir cenários que poderiam ser distintos, “considerando que as taxas gerais deste imposto são diferentes de acordo com os escalões de rendimento colectável, podendo ainda variar de acordo com as opções dos sujeitos passivos de englobamento da tributação, ou não, de determinadas categorias de rendimento”, justifica a AT no relatório.

Até ao final de 2018, as declarações estavam guardadas no Banco de Portugal e nos bancos comerciais. O fisco não tinha acesso à lista porque as três leis dos RERT estabeleceram que todo o processo de regularização decorria à sua margem, desde a declaração ao pagamento da taxa. As três leis asseguravam, através de redacções semelhantes, que a ficha não poderia “ser, por qualquer modo, utilizada como indício ou elemento relevante para efeitos de qualquer procedimento tributário”, penal ou contra-ordenacional, devendo os bancos assegurar o sigilo sobre a informação prestada pelos clientes.

Só que, com a lei do Orçamento do Estado para 2019, o fisco ganhou margem para pedir esclarecimentos e ficar a saber mais sobre as operações e o que levou os contribuintes a não declarar os montantes até optarem pelos RERT.

Antes de 2019, só fortuitamente os inspectores tributários ficavam a saber que um contribuinte tinha aderido. Por exemplo, quando, numa investigação criminal (com o Ministério Público), era possível perguntar ao Banco de Portugal se a pessoa tinha regularizado, ou quando o próprio contribuinte, durante uma inspecção tributária, assumia ter sido amnistiado e invocava esse facto para se livrar de uma infracção.

A partir do momento em que o fisco teve a lista do Banco de Portugal, conseguiu cruzar dados e perceber que, dos 3600 amnistiados, cerca de 1100 tinham sido alvo de inspecções.