8.2.21

No país sem rede, a chuva ou a trovoada podem parar uma aula

Samuel Silva e Paulo Pimenta, in Público on-line

Em vésperas das aulas online arrancarem em todo o país, as dificuldades não se limitam a falta de computadores. Portugal é um país ainda muito desigual na cobertura de rede móvel

O céu está carregado, cinzento escuro. Agora não chove, mas os aguaceiros vão e voltam ao longo de toda a manhã. Fala-se do estado do tempo, mas não é conversa de circunstância. “Basta um dia como o de hoje, mais chuvoso, ou uma trovoada, e o sinal da Internet falha”, descreve Elisabete Almeida. Mãe de uma criança de sete anos, sintetiza as preocupações de muitas famílias no concelho de Aguiar da Beira – e um pouco por todo o interior do país. O fraco acesso à rede pode tornar mais difíceis as próximas semanas em regime de ensino à distância.

A Internet de banda larga não chegou à aldeia de Prado, onde Elisabete vive. É técnica de laboratório na sede de concelho e vai intercalando trabalho presencial com dias de serviço a partir de casa. Desde o primeiro confinamento começou a notar que a ligação que contratou há seis anos passou a funcionar de forma “mais lenta do que o habitual”. Às falhas, quase sempre relacionadas com as condições atmosféricas, já há muito se tinha acostumado.

Basta um dia como o de hoje, mais chuvoso, ou uma trovoada, e o sinal da Internet falhaElisabete Almeida, residente em Aguiar da Beira

Para o quotidiano do seu emprego, os problemas com a Internet não são um motivo para aflições. O que a inquieta é o impacto que as quebras da rede podem ter no dia-a-dia de Mafalda, que frequenta o 2.º ano. Basta um dia de mau tempo e a aula remota pode ser interrompida, teme.

A importância da velocidade de acesso à Internet não é só uma questão de comodidade para os alunos e as famílias. Tem também impactos nas aprendizagens, como sugerem os resultados preliminares de um estudo coordenado por Rosa Sanchis-Guarner, da Queen Mary University of London, no Reino Unido, publicado na semana passada. Os investigadores cruzam os resultados dos alunos de 14 anos nas provas nacionais inglesas com dados sobre a qualidade da ligação à rede nas respectivas casas, concluindo que um Mbit por segundo a mais na velocidade da internet corresponde a uma subida assinalável nos resultados dos alunos.

“A pandemia trouxe nova luz sobre questão das desigualdades de acesso à tecnologia. Os nossos resultados destacam o valor dos investimentos em banda larga e a importância de garantir o acesso universal para mitigar o aumento das desigualdades nas oportunidades educativas”, sublinha Rosa Sanchis-Guarner, num resumo do trabalho que fez no Twitter.

A história de Elisabete Almeida e Mafalda é repetida, quase nos mesmos termos, na casa de Susana Ferreira, que vive uns metros adiante. “Quando o tempo não está muito bom, reflecte-se na ligação”, diz esta mãe de três filhos – dos quais apenas o mais velho, Gonçalo, de 9 anos, está já na escola.

Mafalda e Gonçalo são os únicos dois habitantes com idade escolar em Prado, uma localidade com cerca de 60 pessoas e pouca gente nova. Ali há apenas mais duas crianças, os irmãos do rapaz. Antes da suspensão das aulas, os dois vizinhos apanhavam juntos o transporte escolar para fazerem três quilómetros até Pena Verde. É nessa outra aldeia, que é sede da freguesia a que pertence Prado, que fica a velha escola primária de um só piso onde têm aulas. Apesar de frequentarem anos de escolaridade diferentes, têm o mesmo professor. É assim em todas as três EB1 que servem as aldeias do concelho de Aguiar da Beira, no limite entre os distritos de Viseu e da Guarda.

No ano passado, quando as escolas fecharam pela primeira vez, Mafalda e Gonçalo não tiveram aulas online. Como a maior parte dos alunos não tinha ligação à Internet ou um computador, o professor preferiu retirar as tecnologias digitais da equação. O contacto com a turma do 1.º ciclo foi mantido por telefone e através de fichas de trabalho que periodicamente eram enviadas às famílias.

Enquanto Susana Ferreira recordava o dia-a-dia do primeiro confinamento, a carrinha branca em que é feita a distribuição do correio cruzava o largo em frente a sua casa. Entre Março e Junho, àquela hora, um pouco depois do almoço, a funcionária dos CTT era quem trazia os materiais escolares, previamente impressos pela junta de freguesia.

No segundo período de ensino à distância, que começa segunda-feira, já não será assim. O professor da EB1 de Pena Verde vai fazer sessões online diárias com os alunos de cada ano de escolaridade. Em regra, no agrupamento de escolas de Aguiar da Beira, será dedicado um terço do tempo lectivo a aulas síncronas.

Antes de o Governo ter decidido suspender as aulas houve um primeiro ensaio. A turma de Mafalda e Gonçalo tinha entrado em isolamento profiláctico. Na manhã da quinta-feira em que o primeiro-ministro anunciou que as escolas paravam por duas semanas, os alunos tiveram o primeiro contacto remoto com o professor. A aula foi curta – “meia horita” –, mas suficiente para inquietar Gonçalo. Tem receio de, em videoconferência, “não entender bem as coisas”. A culpa, diz o rapaz de 9 anos, não é só da Internet. É também do seu tablet, cada vez mais lento e com o ecrã estalado. “Já deu uns quantos tombos, é normal que o desempenho já não seja o mesmo”, contextualiza a mãe.

Os problemas com tablet levaram a família a solicitar à escola o empréstimo de um computador para as próximas semanas. O número de pedidos disparou em relação ao ano anterior, segundo o agrupamento. Em Março, apenas 15 alunos diziam não ter um equipamento para acompanhar as aulas à distância. Agora, são mais de uma centena. As famílias perceberam que “não basta ter um computador por casa” para acompanhar o ensino remoto, aventa Carlos Santos, adjunto da direcção.

Dados de uma investigação da Nova School of Business and Economics mostram que houve um aumento no número de alunos com acesso a um computador com internet em casa desde o início da pandemia. Em Março, 22% diziam não ter um equipamento com conectividade, o que corresponderia a cerca de 300 mil alunos do básico e secundário. Dois meses depois, este indicador baixou para 13% (quase 180 mil alunos). A amostra é, porém, relativamente pequena, tendo respondido ao inquérito em ambos os meses 356 professores.

“Hoje espera-se que a situação esteja melhor”, aponta Pedro Freitas, um dos autores deste estudo, lembrando a chegada dos primeiros 100 mil computadores do programa Escola Digital, a que se juntam investimentos feitos por autarquias -- há mais 350 mil comprados e com entrega prometida durante o 2.º período lectivo, segundo o Ministério da Educação.

Também houve uma evolução positiva no acesso à Internet. O Instituto Nacional de Estatística reportava, em Novembro de 2019, que 5,5% das famílias com filhos até aos 15 anos não tinham acesso à Internet em casa, o que representaria cerca de 50 mil alunos. Um ano depois, essa proporção caiu para menos de metade (1,8%). Ou seja, apenas perto de 18 mil alunos do ensino básico não podem navegar a partir de casa.

Esta evolução está directamente relacionada com os efeitos da pandemia sobre a Educação. No mesmo relatório, o INE nota que os indicadores de utilização da Internet por motivos educativos duplicaram no último ano. A percentagem de utilizadores que comunicaram com professores ou colegas através de portais educativos subiu de 14,5% para 30,8%.

O agrupamento de escolas de Aguiar da Beira também nota uma evolução positiva no número de alunos com ligação à internet: dos 640 inscritos, apenas oito declararam não ter qualquer ligação à rede. Na turma de Mafalda e Gonçalo só um colega continua a não ter ligação à Internet. Para casos como esses, a Câmara Municipal de Aguiar da Beira há-de “encontrar uma solução nas próximas semanas”, promete o líder da autarquia, Joaquim Bonifácio.

Também em Vinhais, no distrito de Bragança, há zonas do concelho que têm uma rede de Internet muito fraca ou mesmo inexistente, segundo o director do Agrupamento de Escolas D. Afonso III, Rui Correia. É o que acontece com Américo Manjor, aluno do 7.º ano. “Desde que a escola fechou que não tenho aulas por causa da Internet”, lamenta.
Desde que a escola fechou que não tenho aulas por causa da InternetAmérico, aluno do 7º ano

Para responder a casos como este, “estão a ser tomadas medidas para providenciar as melhores condições de ensino possível aos alunos”, garante a escola. Durante o primeiro confinamento, a resposta para os 50 alunos sem acesso à rede nasceu da articulação entre a escola, a câmara municipal e as juntas de freguesia, que fizeram chegar regularmente fichas de trabalho às casas dos alunos.

Neste momento, esses casos são “pontuais”. Mas solução é mais arrojada: a escola vai ter actividades presenciais para estes alunos. Todavia, a dois dias do reinício das actividades lectivas, Américo Manjor ainda não sabe onde terá as aulas. Inicialmente, estavam previstas para a sede do agrupamento, mas face às dificuldades com os transportes, a direcção solicitou uma autorização à Direcção-Geral da Educação (DGE) para abrir a escola básica de Penhas Juntas, a freguesia onde vive o aluno do 7.º ano e outros colegas – localizada a cerca de 30 quilómetros da sede de concelho. A família vê com bons olhos esta possibilidade. “Seria muito mais fácil para nós e para os alunos”, sublinha Albino Manjor, pai de Américo.

De volta a Aguiar da Beira. A seis quilómetros de Pena Verde, para lá do rio Carapito, fica Valagotes. Na última casa da aldeia, logo após a placa com o nome da localidade, vive João Diniz Pinto. É o único habitante com idade para ir à escola – está no último ano de um curso profissional de Técnico de Desporto.

Valagotes é uma das duas aldeias que compõem Forninhos, no extremo Sul do concelho. A freguesia é uma das 480 “tendencialmente sem cobertura de banda larga móvel” segundo a Autoridade Nacional das Comunicações, relativamente às quais as operadoras de telecomunicações se comprometerem a aumentar a velocidade de acesso à internet no âmbito do leilão do 4G, há um ano e meio. No concelho de Vinhais, além de Penhas Juntas, há mais duas dezenas de localidades nesta lista.

A situação continua a não estar resolvida. No centro de Forninhos quase não há cobertura de rede móvel. Para anunciar a chegada a casa de João Pinto Diniz é preciso pedir ajuda à presidente da junta de freguesia e usar o telefone fixo da mercearia na praça da aldeia. O jovem já não estranha. Habitou-se a escolher os poucos locais da sua casa a partir dos quais pode usar o telemóvel.

Quando, em Março, as aulas foram pela primeira vez suspensas por causa da pandemia, já sabia de onde podia ligar-se ao router portátil, entretanto comprado pela família para garantir a conectividade necessária para assistir às aulas remotas. Mas a experiência foi pródiga em peripécias. Desde logo, os 100 GB contratados mensalmente chegavam apenas para “duas ou três semanas” de utilização. E nunca isentos de falhas.

Muitas vezes, durante as aulas, “a internet caía”. João tinha que repetir o mesmo procedimento: enquanto tentava resolver o problema de ligação em casa, “mandava um SMS a algum colega a avisar que a net tinha ido abaixo”. “Pedia-lhe que avisasse o professor para, pelo menos, não pensarem que eu me tinha baldado”. Quando o serviço voltava, regressava à aula remota.

Cansado de problemas, João Pinto Diniz desistiu. Esteve desligado das aulas quase até ao final do ano. Ia apenas mantendo contacto com os professores por email e telefone. A partir de segunda-feira, não será assim. Os horários das aulas à distância serão os mesmos que tinha quando ia à escola e o director do curso lembrou nos últimos dias que os alunos “têm que se comportar como se estivessem mesmo numa sala”. A necessidade de disciplina não apoquenta João Pinto Diniz. Afinal de contas, quer acabar a escolaridade obrigatória e candidatar-se às Forças Armadas. Entretanto, João tem uma nova ligação à Internet em casa – o que implicou uma mudança de operadora. A qualidade do serviço está “muito melhor”. Mesmo assim, “um dia ou outro, lá falha”. Com Rafael Albuquerque