Natália Faria, in Público on-line
Carlos Farinha Rodrigues diz que o RSI tem de deixar de ser exclusivamente dedicado “aos mais pobres de entre os pobres”. Isto implica desde logo aproximar os seus valores da linha de pobreza e aumentar a sua transparência, até para acabar com o estigma que lhe está associado.
A actual crise veio evidenciar a necessidade de se alargar a abrangência dos mecanismos de protecção social, de forma a trazer para a economia formal todos os que, como os feirantes, por exemplo, têm uma relação muito ténue com o mercado de trabalho oficial. O aviso parte do investigador do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) da Universidade de Lisboa, Carlos Farinha Rodrigues, que integra a comissão de coordenação responsável pela proposta de Estratégia Nacional de Combate à Pobreza. A redefinição do Rendimento Social de Inserção (RSI) e a aproximação dos seus valores aos 540 euros que marcam a linha de pobreza em Portugal fazem parte das propostas já entregues à tutela.
Carlos Farinha Rodrigues integra a equipa que fez o estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos Trajectos e quotidianos de pobreza em Portugal, que é apresentado nesta segunda-feira.
O que podemos esperar desta estratégia nacional de combate à pobreza?
Apresentada a proposta, o Governo tem “a bola nos pés” e, com mais ou menos alterações, submeterá o documento a discussão pública. O que posso destacar é a grande necessidade de colocarmos um certo nível de prioridade política na estratégia de combate à pobreza, que, para mim, é um desígnio nacional. A decisão de constituir esta estratégia e de vir a implementá-la é em si muito positiva. Nós temos uma grande necessidade de dar consistência às políticas públicas no combate à pobreza e à exclusão social.
Isso implica o quê?
Implica, por um lado, dar prioridade política à questão do combate à pobreza, implica perceber que o combate à pobreza não é só uma questão de subsídios, mas tem a ver com diferentes áreas de intervenção das políticas públicas, e implica também redefinir algumas das políticas actualmente existentes e que têm hoje uma eficácia mais diminuta. O exemplo típico é o Rendimento Social de Inserção [RSI] que tem de ser revisto para aumentar a sua eficácia no combate à pobreza.
Nós tínhamos, em 2019, cerca de 17% de pobres e no RSI nunca esteve mais do que 5% da população. E isso tem de ser repensado
O que é preciso alterar no RSI?
Em primeiro lugar, temos que reavaliar a abrangência deste mecanismo, para que ele possa constituir um instrumento que seja um estabilizador automático em tempos de crises. Esta crise veio demonstrar a ineficiência de muitos dos nossos instrumentos tradicionais de combate à pobreza. E o RSI, pela forma como está concebido, é uma medida exclusivamente dedicada aos mais pobres de entre os pobres.
Nós tínhamos, em 2019, cerca de 17% de pobres e no RSI nunca esteve mais do que 5% da população. E isso tem de ser repensado. Por outro lado, temos o estigma associado à medida, o que nos obriga a torná-la claramente transparente, por via da avaliação regular e da monitorização da sua forma de funcionamento.
Há outro aspecto essencial é que a necessidade de repensar os programas de inserção social associados ao RSI, ou seja, não basta dar subsídios às pessoas, é necessário que esses subsídios tentem quebrar as amarras da situação de pobreza. Para isso, é necessário que o RSI esteja associado a programas de inclusão, que, nuns casos, passará pela inclusão no mercado de trabalho, noutros passará por outras formas de inclusão social.
Como é que isto se faz na prática?
Há aspectos que já existem e que podem ser desenvolvidos. Um exemplo: quando o rendimento mínimo foi lançado, uma das imposições, que era parte essencial do programa e que foi das mais positivas, era que nenhuma família com crianças em idade escolar podia receber a medida se as crianças não fossem à escola.
E na questão do trabalho?
Alguns aspectos já estão na lei. Ninguém em idade activa pode estar no RSI se simultaneamente não estiver inscrito no centro de emprego, ou seja, o que nós podemos é ver em concreto como é que estas medidas podem ser melhoradas para aumentar a sua eficácia. E há várias possibilidades. Neste momento, o RSI é uma medida central, a legislação é definida a nível central, mas a execução dos programas de inserção é aplicada a nível local. E não existe qualquer esforço de confrontar as diferentes formas de aplicação da medida no terreno, não há nenhum aproveitamento das boas práticas nem nenhuma correcção das más práticas. Não temos nenhuma instituição que faça uma avaliação do RSI e, se calhar, haveria que estabelecer formas de prestação de contas da medida, de forma regular e sistematizada. No fundo, o que isto implica é termos a capacidade de aumentar a transparência da sua execução, para combater a desinformação e o estigma que estão associados ao RSI.
É importante desenharmos um programa de recuperação económica que seja inclusivo, ou seja, que tenha em conta as variáveis macro-económicas, claro, mas que tenha em conta também as questões sociais
Há propostas no sentido de aumentar a elegibilidade para o RSI?
O que deveríamos ter era um processo que aproximasse o valor do RSI dos montantes da linha da pobreza [540 euros, em 2019]. Claro que isto não pode ser feito de imediato, mas num processo contínuo, que permitisse que o RSI não fosse só um programa de alívio da pobreza, mas uma medida capaz de, de forma sustentada, retirar as pessoas da situação de pobreza.
Mas a proposta de estratégia de combate à pobreza não passa só por aqui.
Não, a estratégia de combate à pobreza há-de no futuro identificar sectores-chave de actuação. Há muito que venho defendendo que o combate à pobreza das crianças é fundamental. Se esse for um objectivo assumido, isso significa que, também no caso do RSI, deveríamos pensar a forma de contabilização dos apoios às famílias com crianças.
Porque é que considera que esta crise veio sublinhar a necessidade de repensar os mecanismos de protecção social?
O que é que esta crise trouxe de novo em termos de pobreza? Por um lado, veio demonstrar que aquilo que conseguimos nos últimos anos em termos de redução da pobreza foi extremamente importante, mas que os factores estruturais da pobreza continuam lá. E em situações de crise emergem com uma força renovada.
Há aqui este desafio de reforçarmos o Estado social em relação a essas famílias que tradicionalmente não eram tidas em conta
Em segundo, esta crise demonstrou que há sectores da população que, porque têm actividades e rendimentos com uma relação muito ténue com o mercado de trabalho oficial (estou a pensar nos feirantes e nalgumas das pessoas que têm trabalho informal), de repente, viram-se completamente desprotegidas. E caíram em situações de pobreza. Ora, isto mostra que devemos fazer um esforço muito grande, não só para apoiar estas famílias, mas para trazê-las para os mecanismos formais da economia, porque essa relação ténue com o mercado de trabalho também se traduz numa relação ténue ou na inexistência de mecanismos de protecção social.
Há aqui este desafio de reforçarmos o Estado social em relação a essas famílias que tradicionalmente não eram tidas em conta. E precisamente porque esta crise pôs a nu camadas da população que estavam completamente desprotegidas e que não tinham sistemas de protecção social é que o Estado teve de fazer tantas alterações aos decretos relativos às medidas de apoio social implementadas em 2020 e 2021. Foi preciso este processo de tentativa e correcção, porque eram sectores que tradicionalmente não estavam abrangidos. E devemos agora aproveitar esta oportunidade para trazer esta gente para os sectores formais da economia, garantindo-lhes simultaneamente direitos e deveres.
Quando tivermos os dados de 2020, vamos ter uma redução da linha de pobreza como tivemos em 2013 e 2014 e, portanto, haverá algumas pessoas que antes eram pobres e que artificialmente deixarão de o ser
Depende disso o combate ao retrocesso na diminuição da pobreza?
Depende também disso, embora não exclusivamente. Que esta crise vai gerar um retrocesso em termos de pobreza, penso que é hoje inquestionável. Basta vermos o que se passa em termos dos rendimentos de alguns sectores da população. Agora, o que temos de ter é mecanismos que sejam capazes de responder a esta e a crises futuras e que possam existir garantindo um nível mínimo de protecção social às pessoas.
A perda generalizada de rendimentos, e o consequentemente abaixamento da mediania de rendimentos, não comporta o risco de levar a uma redução fictícia dos níveis de pobreza?
Isso vai acontecer de certeza. Quando tivermos os dados de 2020, vamos ter uma redução da linha de pobreza como tivemos em 2013 e 2014 e, portanto, haverá algumas pessoas que antes eram pobres e que artificialmente deixarão de o ser. Mas isso é algo de que já estamos à espera. E é possível identificar esses casos e contrariar isso. Mas vai haver sectores que sofrerão uma deterioração muito efectiva das suas condições de vida.
Esta crise é diferente da crise do período da troika porque temos um conjunto relativamente largo de famílias que não viram os seus rendimentos afectados (os funcionários públicos e os reformados, por exemplo), mas houve imensos sectores que ou foram parar ao desemprego ou vivem das medidas públicas adoptadas e dos sistemas de lay-off. E isto implica que pensemos o processo de recuperação económica com algum cuidado.
Primeiro, porque não temos ainda uma noção clara de quando é que esta pandemia vai estar contida. Por outro lado, nem todos os sectores em crise vão recuperar à mesma velocidade. No sector do turismo, é provável que o processo de recuperação seja mais lento. Portanto, o que é importante aqui é desenharmos um programa de recuperação económica que seja inclusivo, ou seja, que tenha em conta as variáveis macro-económicas, claro, mas que tenha em conta também as questões sociais. Isso implica vontade política e uma visão do processo de recuperação económica que não deixe ninguém para trás.