Por Paula Torres de Carvalho, in Público on-line
No cimo de um monte no litoral alentejano, sem água e sem luz, vive, há dois anos, uma mulher por medo de um homem. Farta de maus-tratos, Alzira, de 49 anos, decidiu fugir de casa e da terra onde vivia no interior do país com uma reforma de 234 euros.
As suas tentativas para que o homem com quem vivia e que a maltratava fosse punido não resultaram. A polícia e o Ministério Público não conseguiram provar a existência de maus-tratos.
Alzira garante que o ex-companheiro a ameaçava, não a deixava falar com outras pessoas, que chegou a ter uma navalha “encostada à barriga”, que vivia num “inferno”.
Cansada de ter medo, sem dinheiro, a mulher teve um dia uma ideia: colocou um anúncio numa revista “cor-de-rosa a pedir ajuda e a ver se encontrava alguém”. Recebeu muitas respostas e uma fê-la mudar de vida. Era de um homem disponível para com ela partilhar a casa onde vivia, num local ermo, no Alentejo. Desempregado, oferecera-se para cuidar da casa e do terreno em volta que pertencem a um casal que vive em Lisboa. Em troca, ficou lá a morar. Havia lugar para mais um.
Alzira “agarrou” a oportunidade. E anunciou à filha, já adulta: “Vou para o Alentejo, seja o que Deus quiser”. Hoje, é nessa casa que vive, “composta com mobílias” que encontrou no lixo. Na aldeia quase deserta, aponta para um homem sentado à porta de uma escola onde “justifica” o subsídio de desemprego, conduzindo uma carrinha de transporte de crianças. “Foi ele que me ajudou. É uma pessoa muito boa, tive muita sorte.”
Ameaça de morte
Alzira apresentou a primeira queixa por maus-tratos na GNR em Novembro de 2008. Diz que só foi chamada em Janeiro pelo Ministério Público. Nesse intervalo, conta, viveu “sempre sob ameaça de morte”. “Ele ameaçava que fazia mal aos meus filhos.”
Na conclusão do processo lê-se que “não existem indícios quanto ao crime de maus-tratos” e que “os factos apurados apenas indiciam a prática do crime de injúrias”, sendo que a “denunciada veio a desistir da queixa”.
Em Dezembro de 2009, nova queixa, desta vez à PSP. Consta no auto de denúncia: “Cerca da hora mencionada, o suspeito, viajando no seu veículo automóvel e após o estacionar na berma, abeirou-se da denunciante e exibindo uma navalha, com cerca de 15 cm de lâmina [...], ameaçou-a de que a matava se ela não entrasse no veículo”. Gritou por socorro e chegaram várias pessoas, que não pôde indicar como testemunhas por desconhecer os seus nomes. Lê-se ainda na descrição da “ocorrência”: “Assim, teme pela sua integridade física e própria vida, pelo que solicita, com urgência, às entidades competentes o procedimento legal com vista à sua protecção, nomeadamente, que o visado seja impedido de se aproximar de si e as armas sejam apreendidas”.
Diz Alzira que só foi chamada em Março do ano seguinte. Depois de ter apresentado queixa, fugiu para outra localidade, onde arranjou um trabalho. “Acabei por desistir da queixa com medo que ele me descobrisse”, conta.
No final de 2010, recebeu notícia de que o ex-companheiro se queixara dela por ter abandonado a residência de onde levara um computador, mas o processo acabou também arquivado por falta de “indícios suficientes da prática do crime de furto”.
“Só não quero que ele me encontre”, diz Alzira. Quer sentir-se protegida até ver se consegue dar a volta à vida. “Esta é a vida que eu não queria”, sublinha.
Carta ao Presidente
Na terra que abandonou, ficaram os cinco filhos que teve de outras relações e outros familiares. Ali não tem mais nada, senão a companhia de um “homem bom” numa casa degradada onde vive por favor. De dia, trata das culturas à volta e de dois cães aos quais se afeiçoou. Vai ao café e lê. Estudou até ao sexto ano. “Gosto de ler tudo o que apanho.”
Vai buscar a carta que decidiu escrever ao “Presidente Cavaco Silva”. São quatro páginas numa letra quase infantil e cheias de erros ortográficos: “Longe hoje vivo no Alentejo, já há quase dois anos e ainda com medo de ser descoberta por esse senhor. Senhor presidente tente fazer algo mais contra a violência doméstica que não seja preciso andar como eu escondida com medo. Ajude as mulheres que sofrem”. Não falta referência à sua situação económica: “Senhor presidente, Deus existe tanto para os pobres como para os ricos. Portanto lembre-se que a vida não é só troika e austeridade. Tenho 49 anos eu já sofri tanto, tanto, tanto que gostaria de ter um momento melhor mas já vi que isso nunca irá acontecer, já não confio no governo, não confio na justiça. Porque eu sei que nada tenho e assim tenho que me conformar até que Deus queira”.