por Marina Marques, Rui Marques Simões, Rui Pedro Antunes e Sílvia Freches, in Diário de Notícias
Apesar do aumento das prestações pagas em subsidio de desemprego e em reformas, o Estado prevê gastar este ano menos três mil milhões de euros do que em 2010. Fatores demográficos e de produção de riqueza alimentam o debate sobre a sustentabilidade do Estado social tal como hoje existe
Num país cada vez mais afetado pela pobreza, o Estado social tem sido forçado a emagrecer à mesma velocidade que a população envelhece e o desemprego aumenta. Nos últimos cinco anos, Portugal cortou mais de três mil milhões de euros nas despesas sociais, o que corresponde a uma redução de 1,7 milhões de euros por dia. A educação, com um corte de 1,9 mil milhões, e a saúde, com 1,4, foram as áreas mais afetadas.
Em contraciclo, cresceram as despesas da Segurança Social, sobretudo com prestações de desemprego e reformas. Nos subsídios pagos a desempregados é gasto atualmente 2,7 mil milhões de euros, mais 613 milhões do que em 2010. A subida acompanhou a curva ascendente do desemprego, que aumentou de 10,8% em 2010 para 16,3% em 2013. Mais peso ainda nos gastos da Segurança Social têm as pensões de velhice, invalidez e sobrevivência, com os encargos a passarem de 21,4 mil milhões para os atuais 23,7 mil milhões. Este ano, para o Estado social - entre prestações sociais, saúde, educação e habitação - foi destinado um total de 55,5 mil milhões.
De facto, o aumento da despesa pública com estas prestações e os cortes em saúde e educação foram marcantes a partir de 2010. Mas se o olhar se centrar em toda a última década, chega-se à conclusão de que Portugal distribuiu mais verbas na ação social.
Em valores absolutos, este ano vão ser aplicados mais 12,7 mil milhões no Estado social do que em 2005. Ou seja, em média, o gasto com cada português passou de 4078 euros (em 2005) para 5282 (previstos no Orçamento do Estado de 2014). Porém, o peso das funções sociais no Orçamento representava 48,6% há 10 anos e este ano fica pelos 32,3%.
Educação: a área mais afetada
Nas escolas, nada ficou igual nos últimos tempos - e não foi só por causa das operações plásticas que muitas receberam, por todo o País, à conta das obras da Parque Escolar. A educação foi mesmo o braço do Estado social que mais encolheu.
"Os cortes foram mais do que o exigido pela troika" - 195 milhões para 2012 e 175 milhões para 2013 -, "mas passaram de forma silenciosa, despercebidos", diz Ana Benavente, antiga secretária de Estado da Educação. Para lá dos casos mais mediáticos do aumento da carga horária dos docentes e da criação de mega-agrupamentos escolares, as consequências foram vastas, na opinião de Santana Castilho. O professor universitário, especialista em política educativa, salienta o "afastamento da profissão de muitos e dedicados professores; redução, sem critério, de funcionários indispensáveis; redução da oferta educativa das escolas públicas; eliminação de disciplinas; brutal aumento do número de alunos por turma; diminuição do financiamento dos serviços de ação social escolar; remoção sistemática das respostas para necessidades educativas especiais".
Ainda assim, a interpretação - entre as visões de degradação ou racionalização da gestão da escola pública - varia consoante a ideologia do interlocutor. Ana Benavente fala de um "retrocesso" por se estar a "considerar a educação como custo e não como investimento". Já David Justino, atual presidente do Conselho Nacional de Educação, aponta "ganhos de eficiência". "Não é por gastar muito que estamos a gastar bem."
O sacrificado SNS
O Sistema Nacional de Saúde (SNS) foi outro dos grandes sacrificados, sofrendo uma diminuição no Orçamento de 1,4 mil milhões nos últimos cinco anos. Mas, mais do que os cortes no financiamento, os especialistas contactados pelo DN destacam os efeitos esperados na saúde das pessoas devido às crises económicas e o facto de não ter sido feito qualquer trabalho por parte do Ministério da Saúde para prevenir e monitorizar o sistema.
"A questão não é tanto a redução dos recursos financeiros afetos ao SNS, mas o facto de ter ocorrido num tão curto espaço de tempo", diz Ana Escoval, professora da Escola Nacional de Saúde Pública. O grande problema, salienta, foi o facto de os cortes terem sido aplicados "sem que antes fosse feita uma reorganização do sistema, de forma a evitar sobreutilização de serviços". Exemplo disso é a reorganização da rede hospitalar, só apresentada na quinta-feira, quando os cortes chegaram logo em 2011.
"Este tipo de situações de crises, arrastando consigo problemas sociais, implicam uma antecipação daquilo que é o aumento das necessidades em saúde", defende Ana Escoval. Porque "há transferência de serviços privados para o público, dificuldades em pagar as taxas moderadoras ou os transportes para deslocação aos serviços de saúde e o empobrecimento das pessoas aumenta potencialmente algumas doenças, nomeadamente do foro da demência", explica. "Não podemos esperar que o sistema de saúde esteja preparado para resolver tudo porque a responsabilidade não é toda do Ministério da Saúde, mas tem de haver uma articulação, integração, partilha com outras áreas no sentido de termos políticas equilibradas de resposta para estas pessoas", destaca.
Constantino Sakellarides, presidente da Fundação SNS, começa por falar nesta necessidade de articulação: "O programa de ajustamento foi desenhado sem ter em conta a harmonização das boas práticas nas políticas públicas". Uma harmonização que, defende, "é uma questão de valores da sociedade" que, no caso da Europa, está plasmada nos próprios tratados europeus (Maastricht e Lisboa), preconizando que todas as políticas públicas da União Europeia devem tomar em consideração o seu impacto sobre a saúde.
Mas a tutela garante estar atenta. "Em termos globais, não temos indicação de evolução negativa ao nível dos principais indicadores de saúde", afirmou Francisco George. No entanto, destaca o diretor-geral da Saúde, "não ignoramos que nas famílias com problemas económicos existem necessidades novas". Uma realidade apreendida pelo programa Infofamília, que, explica o responsável, vai já na sua quarta vaga de inquéritos. E estão a ser estudadas soluções para colmatar algumas das situações identificadas, assegurou.
Demografia afeta sustentabilidade?
Portugal é atualmente o sexto país mais envelhecido do mundo. Segundo as demógrafas Maria Filomena Mendes e Maria João Valente Rosa, o cenário mais plausível para 2030 é que a esperança de vida à nascença dos homens aumente dos atuais 76,4 anos para os 80 anos e das mulheres de 82,3 para 86 anos. Avançando até 2060, estima-se que nessa altura o número de pensionistas da Segurança Social cresça 46,4%, atingindo os 4,3 milhões de reformados. Hoje, os pensionistas representam quase 41% da população residente em Portugal com mais de 15 anos. E por cada reformado existe apenas 1,4 contribuintes ativos. Cenários que aliados às fragilidades económico-financeiras do País e ao baixo índice de produção de riqueza tornam inevitável o debate sobre a sustentabilidade da Segurança Social e dos alicerces em que assenta o Estado social tal como hoje funciona.
Fim das reformas: mito ou verdade?
O atual panorama já não é propriamente animador do ponto de vista da sustentabilidade. As reformas, em 2013, custaram 23,7 mil milhões de euros, um agravamento de 41,1% em relação a 2005. Este peso nas contas públicas e a redução da população ativa têm criado a ideia junto do senso comum de que no futuro não haverá pensões de velhice. Dois ex-ministros da Solidariedade Social contestam esta ideia, dizendo ao DN que a mesma não tem correspondência com a realidade.
Bagão Félix, ex-ministro das Finanças e da Solidariedade Social, considera que fomentar "inadvertidamente" esse tipo de pensamentos é um "jogo perigoso". A opinião é partilhada pelo ex-ministro do Trabalho e da Solidariedade Social Vieira da Silva, que considera a ideia de que não existirão pensões no futuro "economicamente pouco séria, socialmente impossível e uma demagogia, quando utilizada politicamente". Além disso, Vieira da Silva explica que este argumento é "utilizado como estratégia comercial de quem quer vender fundos de pensões". E garante: "Deixar de haver reformas seria um retrocesso que a sociedade não aceitaria."
Por outro lado, ambos admitem que terão de existir mudanças. Vieira da Silva assume que "existem problemas de pensões em Portugal, como em todo o mundo", mas lembra que, no limite, está-se apenas a falar da "impossibilidade de pagar pensões aos níveis que se estão a pagar e a pessoa esperaria receber". Problemas que, garante, podem ser "corrigidos com políticas adequadas".
Bagão Félix também defende a necessidade de "adaptar as respostas às circunstâncias", lembrando que essa mudança tem passado - em Portugal e em toda a Europa - pela "alteração da idade da reforma ou pela introdução de variáveis demográficas". O ex-ministro diz ser positivo que "haja acrescida consciência desta evolução para que os agora jovens se interessem por meios suplementares de aforro que os protejam na velhice. É necessário fortalecer a pedagogia da poupança."
Desemprego custa 8,3 mil milhões
Além das pensões, o desemprego é outro grande causador de prejuízos para o Estado, tanto do lado da despesa (os gastos com prestações de desemprego aumentaram mais de mil milhões de euros com a crise) como do lado da receita que os desempregados não geram. O ex-ministro Bagão Félix classifica mesmo os custos do desemprego - que diz chegarem aos 8,3 mil milhões de euros - como o "maior constrangimento orçamental e a maior chaga social da austeridade". Bagão lembra que este valor - que inclui, por exemplo, o "aumento da despesa social e a diminuição das receitas resultantes dos desempregados não terem salário" [através da contribuição para a Segurança Social ou o IRS] - é "superior ao total dos juros da dívida pública e supera [até] o orçamento da saúde ou da educação".
O grande criador de pobreza
O presidente da Cáritas - instituição de solidariedade, que tem feito vários estudos sobre a pobreza - aponta o desemprego como o principal impulsionador da pobreza no País. Eugénio Fonseca salienta que os dados oficiais (do INE) "não refletem a real situação do País porque têm um atraso considerável". Mesmo assim, no mês passado, o INE contava que a população portuguesa em risco de pobreza subiu para os 18,7% em 2012. A Cáritas aponta contas mais recentes do Eurostat em que o número de portugueses em risco de pobreza e exclusão social estará nos 25,3%.
E a pobreza ainda seria significativamente maior se não fosse o apoio do Estado social. Bagão Félix lembra - referindo-se ao mesmo estudo do INE - que os números mostram a "importância das funções sociais do Estado, pois sem pensões, subsídios e abonos sociais a pobreza nesta década não atingiria apenas 18,7% da população, mas alcançaria 46,9%".