1.4.14

Hoje é dia de Paulo Portas

Daniel Oliveira, opinião, in Expresso

Confrontado com a redução drástica do número de beneficiários do Rendimento Social de Inserção, Paulo Portas disse, na sexta-feira, aos deputados: "essas pessoas deixaram de ter rendimento mínimo porque, por acaso, tinham mais de 100 mil euros na conta bancária". Estava-se a falar de 26 mil famílias que perderam esta prestação desde que o governo tomou posse. O que quer dizer que esses depósitos teriam de estar bem disfarçados para que, com tal riqueza acumulada, conseguissem receber o RSI. Ou seja: 95 mil espertalhões com mais de cem mil no banco e capazes de enganar o Estado para receber, em média, 88 euros por cabeça. Isto diz bem da imagem que Portas tem do País onde vive. Ou aquela que ele gosta de passar para a opinião pública.

A diminuição do número de beneficiários do RSI resultou sobretudo da alteração da lei, em 2012. Para não me abandonarem já, por não aguentarem a estopada de cálculos técnicos, fica um exemplo (não sendo a minha especialidade, espero não me enganar nas contas): um casal com um filho que tivesse um rendimento total de 300 euros recebia, antes de 2012, cerca de 94 euros por mês de RSI. Passou a receber 22 quando a lei mudou. Acrescente-se mais uma criança a esta família e mais cem euros de rendimento e passamos de um RSI de 83 euros, antes de 2012, para ficar bem longe de receber alguma coisa depois da mudança da lei. Isto porque cada segundo adulto e cada criança perderam peso nos cálculos feitos através do Indexante dos Apoios Sociais (IAS), que é a medida para estas contribuições.

Basta olhar para a evolução do numero de beneficiários para perceber que tudo tem a ver com a mudança dos cálculos a fazer. Na noite de 30 de junho para 1 de julho de 2012, quando a nova lei entrou em vigor e sem que qualquer nova fiscalização fosse feita, cerca de 10 mil famílias (mais de 39 mil beneficiários) perderam o direito ao RSI. Quando o foi reduzido o valor integral do RSI perderam o direito ao subsídio, no dia 1 de Fevereiro de 2013, mais duas mil famílias (9 mil beneficiários). De resto, a descida tem sido mensal, num momento em que a pobreza aumenta. Desde que a lei entrou em vigor, 32 mil famílias perderam o acesso ao RSI, o que corresponde a mais de cem mil beneficiários. Aliás, até à nova lei, no primeiro ano deste governo, o número de famílias e beneficiários aumentou ao ritmo que aumentava o empobrecimento do País. Como seria natural.

Hoje, para o receber o RSI é preciso acumular o estatuto de quase indigência com a capacidade (até financeira) de vencer o labirinto burocrático que foi construído para desmotivar as pessoas a candidatarem-se ao RSI. Para além disso, o regime hoje existente corresponde a multiplicar as punições de quem receba o rendimento, expulsando o máximo de pessoas do sistema sem que isso tenha correspondido a qualquer alternativa para as suas vidas. É esta a política social do governo. Prefere a velha sopa dos pobres.

Claro que me podem dizer que Paulo Portas não estaria a falar de todos os cem mil que saíram do RSI quando falou do que tinham no banco. Apenas de uma parte, pequena que fosse. Eles de facto existem. Também existem os que perderam o direito ao subsídio por ter património imobiliário superior a cem mil euros. É claro que para violar estas regras era preciso que todos os restantes pressupostos para receber o RSI resultassem de uma fraude. Não é possível ter este dinheiro guardado e, honestamente, ser candidato ao RSI.

Quantos foram então os espertalhões apanhados? Os números exatos terão de ser conhecidos brevemente e esperemos que o Ministério de Mota Soares não os trate como tem tratado quase todos outros: de forma criativa. Se surgir um número estapafúrdio, como já aconteceu no passado, caberá aos jornalistas pedir para ter acesso direto aos números por tratar. Por mim, é com alguma segurança que aposto que bastam duas mãos para contar as famílias que viram, desde a aplicação da nova lei, a sua prestação suspensa ou cessada por terem mais de cem mil euros no banco. No caso do património, os dedos de uma mão chegarão. Ou seja, Paulo Portas multiplicou a realidade por umas boas dezenas de milhares para fazer a mais rasteira das demagogias. Sem se incomodar com o facto de estar a chamar vigaristas a cem mil portugueses.

Porque se sente à vontade para o fazer? Porque apesar do RSI e do Complemento Solidário para Idosos (os apoios aos mais pobres foram os que mais sofreram nas mãos deste governo) terem sido extraordinariamente eficazes na diminuição da severidade da pobreza em Portugal, este género de prestações sociais é quase sempre impopular até o cidadão que a maldiz precisar dela. Assim sendo, as pessoas não se importam de comer qualquer mentira sobre o assunto. Se não é verdade podia ser, pensa quem ouve. Por outro lado, Paulo Portas está, neste momento, tão a leste da realidade que nem se apercebe da dimensão demencial de algumas mentiras que atira para o ar. Ele acredita mesmo que a esmagadora maioria dos beneficiários do RSI são ladrões ou candidatos a isso. Por fim, o vice-primeiro-ministro conta com a preguiça de muitos jornalistas ou apenas com o facto da maioria dos portugueses não lerem jornais exigentes. Depois de dito, poucos saberão que mentiu.

Paulo Portas habituou-se a fazer política assim: dirigindo-se preferencialmente a um eleitorado desinformado e marcado pelo preconceito. Sente que se disser a mentira certa que faça acordar os ódios certos tudo correrá pelo melhor. Até agora, assim tem sido. E é por isso que lhe dedico hoje, dia das mentiras, este texto. Muitos farão associações deste dia a Cavaco, Guterres, Barroso, Santana, Sócrates ou Passos Coelho. Serão sempre aprendizes. Portas bate-os a todos e a todos parece ir sobrevivendo. Reconheça-se então a qualidade do artista. No seu caso, até Aleixo falha: para a mentira ser segura e atingir profundidade, Portas já dispensa que se misture qualquer coisa de verdade.