10.4.14

Talvez o princípio do delírio

Publicada por Manuel Brandão Alves, in A Areia dos Dias

No passado dia 24 de Março o INE divulgou os resultados do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento das famílias no ano de 2012. Durante vários dias os meios de comunicação social e as personalidades mais insuspeitas sublinharam a importância do documento e a necessidade de ponderar adequadamente os seus resultados e conclusões, em particular a da diminuição do rendimento das famílias e as consequências que daí resultam.

Um post já aqui publicado nesse mesmo dia 24 de Março por Carlos Farinha Rodrigues sublinha, com rigor, a conclusão de que em 2012 se verificou um aumento do risco de pobreza (de 17,9 para 18,7% da população), em consequência das medidas de austeridade que o Governo tem vindo a impor. Em termos comparativos, com anos anteriores, a severidade da pobreza é ainda maior do que a que estes números revelam, pela circunstância de que o risco de pobreza é definido como existindo quando o rendimento de uma família é inferior a 60% da mediana dos rendimentos do ano. Ora, como os rendimentos vêm diminuindo, isso significa que o valor equivalente a 60% da mediana dos rendimentos de um ano é inferior ao valor que corresponde a 60% da mediana dos rendimentos de anos anteriores.

Importa sublinhar que as famílias que têm rendimentos inferiores a 60% da mediana não têm rendimentos todos iguais. O agravamento do risco de pobreza é mais brutal para os jovens e os mais velhos tendo, como consequência, não apenas o maior agravamento das suas condições de pobreza mas, também, das condições de sustentabilidade da sociedade portuguesa, em termos sociais mas, também, em termos económicos.

Nunca é demais ter presente as conclusões do estudo do INE; no entanto, entendi aqui voltar ao assunto porque muita “boa” gente rapidamente as esquece ou se comporta como se as tivesse esquecido. Vem isto a propósito de um Programa televisivo emitido no passado dia 7, em que intervieram, um economista (também Conselheiro de Estado) e um jurista que, também, faz de economista, Programa esse que se propôs como tema a discussão a pobreza em Portugal.

Pois bem, o tema do empobrecimento em Portugal foi apresentado como um “tema sobre que gira alguma confusão”. O animador do Programa propôs-se contribuir para que durante a sessão se fizesse luz sobre a questão. Para o efeito, acrescentou que o seu convidado tem uns quadros que certamente tudo esclarecerão. Importa sublinhar que este animador tem por hábito procurar esclarecer, as questões que leva ao Programa, através da apresentação dos números e gráficos que aí apresenta. Deduz a mais-valia do esclarecimento pelo facto de que “quem por aí anda a falar destas coisas não tem números nem gráficos, nem percebe nada disto”.

Independentemente da eventual objetivação que pode ser dada à argumentação com a apresentação de números e gráficos, importa esclarecer que quaisquer números e gráficos são destituídos de qualquer valia quando, como é o caso, não se revelam as suas fontes e as metodologias utilizadas para os obter. Isto é, sem a explicitação destes pressupostos, os dados de um interlocutor valem tanto como os dados de um outro interlocutor que tenha idêntico comportamento.

Mas vejamos alguns pontos da "conversa" realizada. O economista convidado começou por declarar que adotaria uma abordagem macroeconómica, já que não possuía dados que lhe permitissem ter em conta o comportamento das famílias. Será que o INE lhe bloqueou o acesso aos dados do Inquérito às Condições de Vida e de Rendimento e que o Inquérito não tem impacto macroeconómico? Não parecendo que tal bloqueamento tenha existido, então, a única conclusão que se pode retirar é a de que o Estudo do INE foi voluntariamente afastado da reflexão.

Em alternativa o que é que foi feito? Começou por ser afirmado que a pobreza em Portugal não era tão grave quanto tem andado por aí a ser proclamado. Para justificar esta afirmação foi utilizada uma argumentação verdadeiramente espantosa.

Foi introduzida a distinção entre a pobreza real (a que de facto existe) e a pobreza “percebida” (a que se percebe!), que não existe, mas que as pessoas percebem que existe. E porque é que as pessoas percebem uma coisa diferente da que é efetivamente real?

A explicação dos intervenientes no Programa é muito simples: as pessoas sentem-se mais pobres do que aquilo que de facto são, porque deixaram de, como anteriormente, se poder endividar e, por isso, o acréscimo de rendimento que obtinham por essa via passou a ser componente do seu sentimento de pobreza.

Fantástico!

Mais uma vez, os pobres andaram a gastar acima das suas possibilidades (do seu rendimento real). Vêm daí grande parte das dificuldades que o país atravessa, incluindo as da dívida pública! As transferências sociais que procuram tornar menos severa a pobreza não são uma componente importante da dívida pública, para o demonstrar?

Está visto! Assim se percebe que não foram os desmandos financeiros que provocaram a crise; nem a dívida dos que obtiveram financiamentos para a realização de especulação financeira; nem o financiamento a bancos que necessitavam de capitalização; nem o pagamento de PPS; nem a aquisição de serviços de consultoria; etc., etc.

Então isto não é o princípio do delírio? Outros capítulos virão a seguir, certamente.