9.4.14

Valeriu Nicolae, a partir de um “gueto” de Bucareste

Ana Cristina Pereira (Bucareste), in Público on-line

A emigração da mendicidade aumenta a hostilidade contra os ciganos romenos em toda a Europa. Valeriu Nicolae e os colegas do Policy Center for Roma and Minorities tentam quebrar o ciclo de pobreza extrema a partir do bairro de Ferentári. Hoje é Dia Internacional do Povo Cigano.

“A Roménia é muito racista.” O activista diz que o país ainda não lidou com a sua história. Hoje é Dia Internacional do Povo Cigano.
Silviu Panaite

Chega à hora marcada. Traz a mulher e o filho. “Senhor Valeriu! Senhor Valeriu”, alegram-se os miúdos ao ver entrar o seu carro no pátio da escola 136 de Ferentári, o bairro mais temido de Bucareste.

Não terá mais de 1,70 metros o homem magro, de cabeça rapada, que sai do utilitário, escuro. Tem um ar sério, cansado. Veste umas calças de
fato de treino azuis, um blusão com capuz, a condizer. Os miúdos, em seu redor, também estão vestidos para correr e saltar. É hora da habitual partida de futebol de sábado.

Valeriu Nicolae já trouxe proeminentes figuras do basquete, do futebol e do voleibol romeno a este “gueto” de etnia cigana, sobrelotado, conhecido pelo tráfico e pelo consumo de drogas. Alguns jogaram neste pavilhão que agora acolhe rapazes, muitos deles demasiado pequenos para a idade.

Poucos fins-de-semana livres tem Valeriu desde que em 2008 fundou o Policy Center for Roma and Minorities, um think tank sediado em Bucareste, na Roménia. A organização tenta promover a integração da comunidade de Ferentári, dando particular atenção às crianças em risco de abandono escolar e de piores formas de trabalho infantil – mendicidade, tráfico de droga, prostituição.

Trabalhava em Bruxelas, Valeriu. Fazia lobby pela integração das comunidades de etnia cigana. Participava em todo o tipo de encontros. Enquanto isso, em “guetos” como este nada parecia mudar. As pessoas continuavam mal vestidas, mal alimentadas, a chafurdar no lixo, a reproduzir miséria.

Os roma, como preferem que se lhes chame, foram dos primeiros a perder o emprego na transição do regime de Nicolae Ceausescu para a democracia. As crianças forçadas pelos pais a mendigar ou a roubar na década de 1990 transformaram-se em adultos que usam os filhos para mendigar ou roubar. A menos que o ciclo se quebre, os filhos dos filhos hão-de fazer o mesmo. E Valeriu não está a ver isso acontecer, apesar da entrada da Roménia na União Europeia, em 2007.

Compreende os miúdos que saltam em seu redor. “Senhor Valeriu! Senhor Valeriu!” Revê-se neles.

A mãe, cigana, casou-se com um não-cigano. Esperava que isso a arrancasse da miséria, só que o homem, diz o filho, “era um palerma alcoólico”. Dentro de casa, faltava tudo. E, por mais que a mãe se esforçasse, as crianças não eram encaradas como romenas, mas como ciganas, simplesmente.

“Cigano piolhoso!”, chamavam-lhe alguns colegas da escola primária. Ele nunca tivera piolhos. A mãe sempre fora obcecada pelas limpezas. Uma vez por semana, lá em casa, lavava a cabeça de cada um com uma mistura de água e gasolina. Duas vezes por semana, fazia o mesmo com o chão e com os móveis.

Pouco podia contar com o marido, a mãe de Valeriu. Para pôr comida na mesa, socorria-se de estratégias que irritavam a vizinhança. Criava galinhas numa estrutura que montara em frente ao prédio. Levantou uma barraca para fumar porco. Com uma panela grande, da gordura animal fazia sabão.

No início, Valeriu detestava ir à escola. Depois, percebeu que ir à escola era uma forma de arranjar comida. Aprendia tudo muito depressa. Tornou-se o melhor aluno da turma. Quando a sua fotografia apareceu no quadro de honra, alguém foi à sua porta defecar e escrever: “Cigano fedorento.”

A sua felicidade durou pouco quando foi eleito presidente de turma, uma espécie de delegado de turma, na 4.ª classe. Num intervalo, ouviu o professor comentar: “Os idiotas da minha turma votaram num cigano fedorento em vez de votarem na filha do professor universitário Xulescu."

Uma vez, já no fim do secundário, o seu gosto pelo basquetebol fê-lo perder a noção do tempo. Ao perceber o atraso, correu para a aula. Estava um calor dos diabos. Transpirara por todos os poros. Tinha a T-shirt num pingo. O professor explodiu: “Estás a feder!” Virou-se para a turma: “Sabem como cheira um cigano fedorento? Como este! Venham cá cheirá-lo!” Os colegas tiveram de lhe obedecer. Vieram todos cheirá-lo, um a um. Acha que aquele foi o momento mais humilhante de toda a sua existência.

O discurso do taxista que nos trouxera a Ferentári não o espanta. Os ciganos não são romenos, dissera o homem. São “sujos”, “preguiçosos”, “ladrões”, dissera ainda. Sucessivos inquéritos, lembra Valeriu, indicam que a esmagadora maioria dos romenos não gostaria de ter um cigano na família.