Ana Rita Bessa, in o Observador
Eles não ficaram a pensar se cabe ao Estado o papel “providenciador” nem presos na dúvida moral sobre o “assistencialismo”: cuidaram de se proteger e pragmaticamente saíram à rua para fazer acontecer.
«Fizemos isto por nos fazer confusão as redes sociais estarem cheias de mensagens ‘stay safe, stay home’ e vermos (ao entregar cabazes de comida, nas últimas semanas) pessoas que, por estarem isoladas, passam a precisar da ajuda das instituições. Ficaram sem maneira de sustentar a família, assim, de um dia para o outro.»
Esta frase é de dois amigos de 24 anos, o Xavier Appleton e o Francisco Palma Carpinteiro. Dois amigos que sentiram qualquer coisa de dissonante no slogan “stay safe, stay home” e perceberam que, para muitas pessoas, estar em casa não significa estar a salvo.
Reconheceram a mesma realidade que é descrita aqui, através de quem, no terreno há mais de vinte anos, nos diz em tom perturbado que “os pedidos de apoio parece que nascem do chão. Nunca vi nada assim”.
Com a pandemia instalada em Portugal, e o confinamento a que fomos obrigados em consequência, aconteceram duas coisas.
A primeira, imediata, foi o encerramento de muitas IPSS e ONG que prestam apoio social, entregando refeições ou acompanhando quem está sozinho e sem meios; obrigadas a fechar portas por razões sanitárias, sem terem acesso aos fornecimentos habituais, com voluntários em quarentena, desocultaram uma pobreza que persiste entre nós e que vive apaziguada apenas por esta ajuda.
A segunda, mediata mas já real, tem que ver com as empresas que entraram em layoff, com os seus colaboradores que passaram a receber muito menor salário e com as pessoas que perderam já o seu emprego. Para estas, a situação de pobreza surgiu inesperadamente, numa altura em que podem fazer muito pouco para a contrariar. São já 1.180.769 os trabalhadores em layoff e mais 76.628 desempregados –quase um terço da população ativa.
Para uns deixou de haver quem lhes lembra o que é “casa”, e para outros ficar em casa é ter as mãos atadas para lutar contra esta revolta na vida. Nem uns nem outros estão a salvo.
E aqui entra esta “nova” geração, em início de vida ativa. Criaram novas redes de apoio, reais e digitais, juntaram-se a quem já está no terreno para poder manter apoios em marcha, ofereceram tempo, criatividade, braços e pernas, e aí estão a amparar e a levar ajuda vital aos que agora precisam.
Não ficaram a pensar se cabe ao Estado assumir o papel “providenciador” e se os setores social ou privado devem ser apenas supletivos, não ficaram suspensos na dúvida moral sobre o “assistencialismo”, não fizeram petições ou manifestações de apelo à intervenção de outro alguém. Simplesmente cuidaram de se proteger, para sua salvaguarda e a dos outros, e pragmaticamente saíram à rua para fazer acontecer. E com isso deram a sua resposta, afirmaram a sua visão do mundo.
Há muitas lições a retirar daqui; cada um poderá fazer esse exercício.
Mas há uma que penso ser coletivamente relevante, agora e no futuro. É que há uma nova geração, pelo menos uma parte dessa geração, para quem uma certa arrumação ideológica já não faz sentido. Que não está à espera que façam por eles. Que não quer ficar paralisada em debates pragmaticamente inúteis sobre modelos de sociedade, porque, entretanto, a realidade já se sobrepôs. Que não compreende uma semântica que reduz a participação da sociedade, enquanto eles já aí estão, a construí-la. Que sabe ler os sinais do seu tempo e a eles deseja responder, solidariamente, articuladamente, como for mais eficaz. Com projetos inovadores, com o que cada um sabe fazer, com tempo. Voluntariamente.