André Borges Vieira e Ana Marques Maia, in Público
Sem carros para arrumar ou sem gente a quem pedir, quem depende do dinheiro de quem costumava encher as ruas não consegue garantir o suficiente para comer ou para sustentar dependências.
Ainda há dois meses Cristina não precisava de muito tempo para que o copo que pousava à sua frente numa rua da Baixa do Porto se enchesse com 20 euros. Estava numa zona das mais frequentadas por turistas e, durante uma tarde inteira, por força da boa vontade de quem passava, conseguia angariar, em média, cerca de 100 euros. Sem que alguma vez imaginasse, de um momento para o outro, as ruas onde pede para alimentar o vício da droga ficaram vazias. Para combater a covid-19 o mundo fechou-se em casa.
Mas, para Cristina e para muitos outros que vivem do que a rua lhes dá o combate continua a ser o mesmo – juntar o dinheiro suficiente para aguentar mais um dia. Sem gente a quem pedir ou carros para arrumar, quem depende dos que passa, para garantir a alimentação ou sustentar um vício vive hoje com a carteira vazia e os bolsos cheios de nada sem saber se vai conseguir comer ou curar a ressaca.
Perto de um dos ex-libris da cidade - a torre dos Clérigos -, com máscara que serve para a proteger do novo coronavírus, Cristina segura um cartão com uma frase de ajuda: “Por favor ajuda com comida e dinheiro”. Das repetidas vezes que passamos por lá encontrámo-la todos os dias no mesmo sítio, umas vezes sentada e noutras de pé. Quase sempre, era a única pessoa que ali estava. Passasse-se ali há dois meses e provavelmente nem se daria pela sua presença – o movimento de pessoas ajudaria a camuflá-la. Raras vezes sai dali e quando o faz ausenta-se por poucos minutos. Sempre que consegue o suficiente para consumir, deixa o lugar vago para acalmar o vício e voltar mais tarde.
Não são muitas as vezes que agora o faz e cada vez menos tem conseguido acalmá-lo. Pouco depois de nos termos aproximado e trocado algumas palavras dizia-nos que o que a leva a estar naquela posição há cerca de 12 anos é a dependência que tem. Há pouco tempo não era um problema conseguir dinheiro para cocaína. Agora está num ponto mais visível, mas dantes ficava mais perto da livraria Lello, um pouco mais acima, onde conseguia estar mais perto dos turistas, que lhe garantiam em média 100 euros. “Em 5 minutos fazia 20 euros”, atira. Do dinheiro que angariava não sobrava um euro ao final do dia. Consumia o correspondente ao mesmo valor que ganhava diariamente.
Hoje não consegue “mais de dez euros” e, para isso, precisa de ficar lá “o dia todo”. O preço das doses diz manter-se no mesmo valor. Sendo o dinheiro que consegue manifestamente insuficiente para continuar com os níveis de consumo anteriores, só consome “umas quatro vezes por dia”. Mas para isso conta com alguns “amigos” que partilham consigo. Dantes perdia a conta ao número de vezes que consumia.
“A vida tem sido cada vez mais difícil. Nem para comer. Não há ninguém na rua”, diz em tom de desespero. Não fosse a metadona que lhe é garantida pelas equipas de rua e estaria um pouco pior. Ainda assim, diz que o corpo dela está a ressentir a falta da substância que consome há vários anos.
A sentir o mesmo efeito está António, também viciado em cocaína. Ao final da tarde de um dia da semana, como tem feito todos os dias, está deitado frente a praça da República, debaixo do mesmo prédio onde costuma dormir, em cima de uns cobertores que usa para fazer um colchão improvisado e para se proteger do frio.
Sem consumir há quase dois meses
Usa a beira da montra de uma loja para pousar tabaco, um isqueiro, uma garrafa de água, umas bolachas, uma malga vazia de plástico para a sopa e um iogurte. Tinha acabado de jantar a comida que foi buscar à secção dos Albergues do Porto da rua Mártires da Liberdade, ali perto. Antes de falar com o PÚBLICO acende um cigarro. Aqueles que tem para fumar conseguiu-os coleccionando os poucos trocos que ainda consegue fazer. Não são muitas as moedas que consegue juntar.
Noutras circunstâncias estaria na praça em frente a estacionar carros. “Não há carros” e “não há gente”. Também não há droga para consumir. Desde que as ruas ficaram vazias nunca mais consumiu nada além da metadona. “Consumo branca”, diz. Mas sem dinheiro foi obrigado a deixar de o fazer. Porém, não sem sacrifício: “O meu corpo está a ressentir. Há dois meses que não toco em nada. Estou à rasca para arranjar. Mas agora não dá nada. Ninguém pára aqui. Isto está morto”.
O mesmo problema tem Paulo, que arruma carros na Cordoaria para garantir o suficiente para se alimentar. “Não tenho problemas com drogas ou com álcool. O dinheiro que ganho é para comer”, esclarece. Mas também não tem carros para arrumar. Passa pouco tempo das 17h30 quando falamos. Vai ao bolso e tira cerca de 70 cêntimos. Já tinha gasto algum do que ganhou durante o dia a comer “qualquer coisa”. Foi o que sobrou dessa despesa.
Habitualmente, antes do início da pandemia, fazia entre 30 a 40 euros por dia. Isto porque quando atingia o objectivo - garantir as refeições – saía dali. No dia anterior, até às 19h, “tinha feito” 60 cêntimos. Só depois dessa hora é que conseguiu fazer quase cinco euros, mas mesmo assim faltava-lhe 40 cêntimos para o menu que costuma pedir ao jantar. Quando não consegue levar para a casa abandonada que ocupou o suficiente para jantar espera pelas carrinhas de distribuição de refeições que andam pela cidade. “Isto está muito complicado. A seguir vamos a andar a roubar uns aos outros”, atira.
Enquanto falamos passa um carro que abranda para quem está lá dentro lhe dar dois cigarros. “É um senhor que tem um estabelecimento”, explica. Paulo costumava ajudá-lo a arrumar a esplanada. Em troca recebia uns cigarros e alguns trocos. Agora não há esplanada para desmontar, mas continua a conseguir “dois ou três cigarros”.
Atrás dos carros também anda Victor, mas não é para os arrumar. Junto aos semáforos espera que passe para o vermelho para tentar a sua sorte. Assim que o sinal verde passa a amarelo ouve-se o bater no chão das duas muletas que o ajudam a deslocar-se. Encosta-se aos poucos carros que ficam à espera retomar a marcha, mas na maior parte das vezes não consegue mais do que uma janela fechada.
“As pessoas fogem de mim na rua”
Também pede para comer: “Só o faço até conseguir o mínimo para comer uma sopa e duas sandes”. Dantes amealhava 15 euros em menos de uma hora. Agora mal consegue fazer quatro euros. “Para fazer 1 ou 2 euros preciso de três ou quatro horas. Ainda assim, diz ser o suficiente para fazer uma refeição. Depois disso encosta-se no seu canto “a ler”. Demoraria ainda umas horas para o poder fazer. No bolso tinha apenas 1,7 euros que juntou desde as 16h. Já tinham passado mais de duas horas. Normalmente pedia pelas ruas. Por necessidade passou a fazê-lo junto aos semáforos. É a única forma que tem de chegar a alguém. “As pessoas fogem de mim na rua”, explica.
No dia em que conversa connosco o seu “canto” que ocupa na rua para dormir tinha sido assaltado: “Levaram-me tudo. Fiquei sem cobertores e sem roupa. Vou ter de arranjar tudo outra vez”. Diz que não é a primeira vez que acontece. Ainda assim naquela noite teria de voltar a dormir na rua sem saber se conseguiria àquela hora garantir dinheiro suficiente para uma refeição: “Agora nem albergue nem nada consigo. Ando a comer pão ressesso da rua”.