Ana Cristina Pereira, in Público on-line
Proposta de lei atribui competências cíveis aos tribunais criminais para tomar decisões provisórias urgentes de protecção de vítimas de violência doméstica, incluindo de regulação do exercício das responsabilidades parentais. Conselho Superior do Ministério Público diz que se deve começar já a pensar sobre “os instrumentos de trabalho e os meios que estas alterações necessariamente exigem”.
O Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) recomenda que se comece já a pensar no que vai ter de mudar para que os tribunais criminais possam tomar decisões provisórias urgentes sobre o uso da casa de morada de família, o exercício das responsabilidades parentais ou a guarda de animais de companhia nos processos de violência doméstica. O sistema “não está, de todo, preparado” para isso, diz.
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A proposta foi aprovada pelo Conselho de Ministros na última quinta-feira, 23 de Abril, seguindo uma recomendação do Grupo de Peritos para o Combate à Violência contra as Mulheres e à Violência Doméstica do Conselho da Europa. Deu entrada no Parlamento acompanhada de pareceres de diversas entidades.
Na fundamentação da proposta, o Governo assume que o dever de proteger as vítimas está “seriamente” dificultado pela segmentação que hoje existe. O processo-crime decorre num tribunal criminal, a regulação das responsabilidades parentais num tribunal de família e menores, com “risco de desarmonia e mesmo de colisão das respectivas decisões”. Acontece um tribunal decretar uma ordem de afastamento do agressor e outro estabelecer visitas, até a crianças acolhidas em casa-abrigo.
A criança “é, muitas vezes, a vítima esquecida da violência em contexto familiar”. E, aí, o tempo “é um facto decisivo”. “Nem sempre é possível aguardar o proferimento da decisão do tribunal que afaste, de modo definitivo, o perigo de lesão dos seus direitos fundamentais, tornando-se necessária uma composição provisória dos litígios.”
No exame de ordens jurídicas de outros países, o Governo encontrou “providências de tutela de natureza cível e penal, aplicáveis às vítimas de crime em geral e às vítimas de violência doméstica, em particular”. No Reino Unido, por exemplo, “as providências de protecção podem ser decretadas tanto ao abrigo da lei civil como da lei penal”. Na Suécia também.
A proposta realça o exemplo espanhol, que tem tribunais especializados. “O sistema consagra medidas de protecção integradas (ordem de protecção), com medidas de coacção de natureza penal e civil”, expõe. “As ordens de protecção, tanto de natureza penal como de natureza civil, são aplicadas pela autoridade judicial à vítima da violência doméstica, na sequência de decisão do juiz de instrução. As medidas de protecção de natureza civil contidas na ordem de protecção são válidas por 30 dias.”
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O Governo chegou a pensar na transposição desse modelo, mas afastou essa ideia, “por dificuldades sérias de legitimação ou propriedade constitucional”. Optou pela “partilha de tarefas”, isto é, pela “atribuição de competências cíveis aos tribunais criminais para o proferimento de decisões provisórias urgentes”. O objectivo, ao que explicou a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, é melhorar a avaliação do risco nas primeiras 72 horas.
Havendo “filhos menores, a atribuição de estatuto de vítima à criança e à pessoa adulta é comunicada imediatamente pelas autoridades judiciárias ou pelos órgãos de polícia criminal à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens e ao tribunal de família e menores”, lê-se na proposta. “O MP ou o órgão de polícia criminal realizam, no prazo de 72 horas, as diligências probatórias de avaliação do enquadramento familiar, social, económico, laboral e do estado de saúde da vítima e das condições de habitabilidade da sua residência, bem como do relacionamento desta com o arguido e deste com os filhos menores, incluindo informação sobre a sua situação escolar”.
Só a pedido do MP ou depois de o ouvir e as vítimas adultas e menores, o tribunal procederá à regulação provisória das responsabilidades parentais. Em caso de necessidade, determinará a suspensão do exercício das responsabilidades parentais, o uso da casa de família e a guarda de animais de companhia. Também ouvirá a “pessoa denunciada ou arguida, excepto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da decisão”. E comunicará as decisões ao MP do tribunal de Família e Menores para que se instaure um processo urgente.
No seu parecer, o CSMP reclama “uma reflexão muito profunda sobre o significativo impacto” que tais alterações “produzirão num sistema que não está, de todo, preparado para o receber”. “Basta, para tanto, analisar o forte impacto que qualquer alteração estrutural implica, designadamente face à enorme escassez de recursos humanos e materiais, seja na dimensão dos magistrados, seja nos órgãos de polícia criminal e, com particular destaque, nos oficiais de justiça”, refere.
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Entende que se deve, desde já, começar a pensar “sobre as alterações organizativas, o trajecto operacional do desenvolvimento das diligências e decisões, os instrumentos de trabalho e os meios, que estas alterações necessariamente exigem e que as terão de acompanhar”. “Se assim não for, o sistema irá ter muita dificuldade em assimilar este aumento da complexidade da acção que se lhe exige, com o risco dos efeitos negativos que daí podem resultar”, avisa.
Subjacente está o risco de decisões, ainda que provisórias, tomadas por juízes de tribunais de instrução que, muitas vezes, não tratam de regulação de responsabilidades parentais há anos e que estão focados no arguido e no crime. Isto com base em relatórios que até podem ter sido feitos por polícias, porventura sem tempo para ouvir as crianças. “Não pode pensar-se que tudo se conclui com a eventual aprovação destas alterações legislativas – nesse momento começa a verdadeira prova de fogo, a sua efectiva aplicação, que depende em grande parte da preparação que tiver sido feita até lá.”