30.4.20

“A pobreza é o principal determinante de doença”. Entrevista a Henrique Barros, presidente do Conselho Nacional de Saúde

Joana Ascenção, in o Observador

Dirige o Conselho Nacional de Saúde, o órgão consultivo do Governo que está na linha da frente da gestão da crise sanitária provocada pelo novo coronavírus. Em entrevista ao Expresso, Henrique Barros diz que o desconfinamento vai provocar “seguramente” um novo crescimento da pandemia, mas a alternativa não pode ser continuar em casa. “Na sida, a solução não foi deixar de ter relações sexuais, foi passar a tê-las com preservativo”

em trabalhado em casa, apesar da perda social que considera ser a “invasão do domicílio pelo espaço laboral”. Lá não encontra ninguém, “nem o vírus”. Entre as reuniões espelhadas no ecrã do computador, o epidemiologista e professor, de 62 anos, coordena o Conselho Nacional de Saúde, órgão consultivo do Governo na linha da frente da gestão da crise sanitária. Vive agora um dos maiores desafios profissionais da carreira. Não tem medo, mas respeito suficiente pela ciência para constatar que se lhe pede muitas vezes o que ela não pode oferecer.

Numa crise de saúde pública como esta, é mais determinante a mortalidade de um vírus ou a sua propagação?

É uma discussão interessante, essencialmente filosófica. Tendemos a dar funcionalidades aos agentes. “O vírus faz isto porque quer aquilo." Mas, que eu saiba, nunca ninguém falou com ele. Pressupomos, numa lógica darwiniana, existir um interesse competitivo que leva um agente a não ter qualquer vantagem em dar cabo dos hospedeiros. Razão pela qual, quando o agente chega, tem uma virulência maior do que aquela com que vai sobreviver. Por isso, no início, as pandemias têm um caráter mais grave.

Foi coordenador nacional do combate à sida em Portugal. Considera este vírus simpático?

A covid-19 tem uma alta capacidade de contágio, transmite-se na ausência de sintomas, há várias gerações de infeção que se sucedem com relativa rapidez. Não me parece nada simpático. Depois de conhecido, o VIH é potencialmente mais simpático, se pensarmos que temos formas de acabar com as infeções transmitidas de mãe para filho e através do sangue. Só não controlamos melhor as infeções transmitidas sexualmente porque não gostamos de usar preservativo. Portanto, o coronavírus parece-me mais antipático hoje em dia. Agora, se pensarmos que, por ano, morrem mais de 700 mil pessoas com VIH, 40 anos depois do surgimento da doença, o VIH é muito mais antipático.

É expectável que este novo coronavírus, daqui a 40 anos, seja mais bem controlado?

Pode acontecer que, de tempo a tempo, apareça uma estirpe particularmente violenta, como acontece com o vírus da gripe. Mas ninguém pode honestamente dizer o que vai acontecer sequer no próximo ano.

Aproximam-se decisões complexas, que põem em cima da mesa um balancear entre saúde pública e economia. O que é presumível que se comece por desbloquear?

Os italianos estão a pensar abrir dois tipos de lojas o mais rapidamente possível: as livrarias e as de roupa para bebé. Por um lado, as pessoas precisam de ler. Por outro, as mães e os pais italianos cujos filhos continuam a nascer querem comprar roupa e não têm onde. Vamos ter de perceber até onde podemos ir e as alturas em que teremos de recuar um pouco, sem contar com o Governo para dizer “hoje fecha loja, amanhã abre loja”. Sabemos que a infeção em Portugal, como noutros países, está numa linha descendente em resposta a um conjunto de medidas. Mas as decisões de natureza social e económica são essenciais nas escolhas sanitárias.

Pelo que sabemos da História, a forma de vencer algumas pandemias foi manter alguma normalidade social, por forma a criar imunidade de grupo. Desta vez o mundo optou por não o fazer. A vida humana é agora mais valiosa?

Hoje em dia, como é evidente, a vida vale muito mais. E sobretudo há uma tensão muito grande entre o valor económico e o valor da saúde. Só que às vezes parece que as pessoas se esquecem de uma certeza: não há boa saúde sem boa economia.

E a pobreza económica gera pior saúde?

A pobreza é o principal determinante de doença. Podemos não saber muito sobre o vírus, mas sobre a relação da pobreza com a saúde temos conhecimento inequívoco. Podemos não gostar de falar disto, podemos sentir-nos impotentes para mudar a situação, mas não vale a pena fazermos de conta que não o sabemos.

Neste momento preocupa-o mais o vírus ou as consequências socioeconómicas que ele acarreta?

Não consigo responder. Podemos estar a prejudicar pessoas com necessidade de recorrer aos serviços de saúde, que não o fazem por medo ou porque esses mesmos serviços, focados na resposta aguda ao coronavírus, estão menos “amigáveis”. Este é um excelente exemplo de que há um balanço a fazer.

Na saúde mental - de que não se tem falado muito - qual é o prognóstico?

Uma preocupação muito sublinhada nas discussões do Conselho Nacional de Saúde tem sido não esquecermos, de um momento para o outro, as pessoas com problemas de saúde mental. Por outro lado, estas medidas excecionais têm impacto na saúde mental. Do que conhecemos, poderão aumentar os conflitos e as formas de violência interpessoal. Vai haver gente a precisar de ajuda profissional especializada e temos de estar preparados.

O "El País" chamou-nos os suecos do sul da Europa. Conhecendo o sistema de saúde sueco, porque foi lá investigador, até que ponto as medidas mais frouxas da Suécia caberiam num país como Portugal?

Quando trabalhei na Suécia, nunca fui ao quarto de banho do hospital que não tivesse papel, sabonete e toalha de limpar as mãos. Se é dessa Suécia que está a falar, gostaria que fizéssemos o mesmo. Mas não podemos mudar em meses séculos de cultura. Um japonês não se cumprimenta com a mão, baixa a cabeça. Não há sociedades melhores ou piores.

Estava a referir-me às medidas de combate à covid-19...

Na China, que foi brutalmente autoritária, entre o momento do anúncio do cerco sanitário a Wuhan, por volta das 2h da manhã, e o início da aplicação da medida, às 9h da manhã, cinco mil pessoas saíram da cidade. Se as pessoas não compreenderem as medidas, encontram sempre formas alternativas de tornear o problema.

As medidas aplicadas em Portugal foram as melhores para a sociedade?

Foram de certeza, porque não saberemos jamais se poderia ter sido de outra maneira. E olhando para o que se está a passar, tudo leva a crer que foi bem feito.

Disse que o tempo da informação científica não se podia confundir com o tempo da informação política.

O Governo - e muito bem - tomou as decisões que tinha de tomar. Ninguém pode honestamente dizer que há fundamentação científica para a generalidade delas.

O mundo pode chegar à conclusão de que esteve errado ao tomar certas atitudes?

É cedo para fazer esse balanço. Os políticos precisam de fazê-lo rapidamente e tomar atitudes. A ciência precisa de mais tempo. Convém não pedir à ciência aquilo que ela não pode dar. Mas começa a haver alguns sinais de que a informação vinda da China ter-nos-á levado a não considerar aspetos que um conhecimento mais profundo nos faria valorizar.

Como quais?

Aquando do SARS, em 2002, não houve este alarme todo que temos agora. Nos últimos 20 anos, o número de aeroportos da China multiplicou-se por mais de cinco vezes. O número de passageiros internacionais multiplicou-se mais do que essas vezes. Muita gente pensou que a situação seria parecida ao SARS, que ia haver alguma contenção local do problema. E é interessante sermos tão entusiasmados em relação à capacidade de contenção dos países daquela região e não nos perguntarmos porque diabo o vírus cá veio parar.

Houve medidas não tomadas no tempo devido?

É uma pergunta que se pode colocar. A infeção teve menos impacto em Pequim, que é a capital da China, do que em Milão. Se a contenção local tivesse sido feita como se diz que foi, esperávamos um vírus localmente contido.

Uma segunda curva é um cenário certo, por esta hora?

Ao raciocinarmos por analogia, se na China não houve segunda curva, porque haverá na Europa? Mas se me pergunta: ao abrirmos tudo, haverá um novo crescimento da infeção? Seguramente sim. Mas sairmos de casa não é só por si uma fatalidade. Voltando à experiência do VIH, a solução não foi deixar de ter relações sexuais, foi passar a ter relações sexuais com preservativo.

O nosso maior ganho, neste interregno, foi termos aprendido a defender-nos?

Gostaria de ser otimista, mas infelizmente, por exemplo, nos meios de comunicação social, gastamos mais tempo a falar do que não sabemos do que a usá-lo para atividades de caráter pedagógico.

Ainda lê notícias?

Sim. Mas noto os conteúdos opinativos pouco fundamentados. O relevo da opinião dos peritos é desvalorizado porque a opinião científica se deixou tingir por valores e escolhas que não têm nada de técnica. A ninguém interessa a minha opinião sobre construção civil ou sobre desporto motorizado.