28.4.20

Peritos defendem abertura do país por regiões

Inês Chaíça e Miguel Dantas, in Público on-line

O número médio de contágios (ou o valor de R) teima em não descer em Portugal. Contudo, as assimetrias regionais vêem-se até na forma como a doença atinge o território. E, por isso, na opinião de especialistas ouvidos pelo PÚBLICO, a ideia de abrir o país a várias velocidades, dando prioridade às regiões menos afectadas, pode ser uma das soluções.

A ideia de levantar as medidas de restrição a vários tempos não é nova, mas ganha fôlego com os dados conhecidos no domingo, durante a conferência de imprensa diária da Direcção-Geral da Saúde (DGS). Nessa conferência, a ministra da Saúde, Marta Temido, tornou conhecidos dois valores que poderão ser determinantes para a estratégia de levantamento das medidas do estado de emergência, decretado a 16 de Março. E, com base nisso, um processo a várias velocidades parece plausível e até aconselhável aos olhos de vários especialistas ouvidos pelo PÚBLICO.

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Esta discussão volta a estar em cima da mesa antes de uma reunião entre o Governo e os especialistas em epidemiologia da DGS, entre outros, que decorre esta terça-feira. Depois desse encontro, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o primeiro-ministro, António Costa, irão, em conjunto, decidir quanto ao prolongamento do estado de emergência e respectivas medidas de restrição.

Mas há vários factores a ter em conta nessa equação. Alguns são políticos e outros científicos. Um deles está assente num dos indicadores utilizado a nível internacional para perceber a capacidade de contágio de uma doença: os valores de R0 e Rt, que Marta Temido referiu no domingo. O valor de R0 “mede o número de contágios que acontecem quando a doença tem condições ideais” para se disseminar, sem qualquer medida de confinamento ou contenção, começa por explicar Manuel Carmo Gomes, professor de Epidemiologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa ao PÚBLICO. Portugal tem um R0 de 2,0.

O valor de Rt (ou efectivo) passa a ser relevante mais tarde, depois de aplicadas as medidas para conter a propagação da doença, quando o “número médio de contactos que um infeccioso tem começa a diminuir”, e é avaliado de acordo com uma variável temporal (normalmente o dia). Esse valor situa-se em 1,04, de acordo com os dados do período entre 16 e 20 de Abril, citados por Marta Temido, um valor acima daquele que foi registado no início de Abril — entre os dias 6 e 10 registou-se um Rt de 0,95 — que pode ser explicado pela violação das medidas impostas no fim-de-semana da Páscoa.

Este valor ainda está longe do zero (valor de referência para se dar uma doença como dominada) e continua acima de um, o que significa que a pandemia não está a abrandar. No entanto, já há datas para o regresso às aulas e aponta-se o início de Maio como a data-chave para o levantamento das restrições. Mas será prematuro?

Um regresso a várias velocidades
António Costa falou desta ideia numa entrevista há duas semanas, quando se discutiu a hipótese de levantar medidas de confinamento de acordo com as assimetrias do país e da população. Medidas diferentes para regiões diferentes — em suma, um país a várias velocidades. E, tendo em conta que os valores de R são diferentes para cada região, essa ideia faz sentido para alguns especialistas.

“Nem todos temos a mesma opinião sobre isso”, atalha Manuel Carmo Gomes. “Na minha opinião é um bocadinho precipitado desconfinar já o país todo, porque o R não está num valor nada confortável”, afirma. “No entanto, quando olhamos para o mapa de Portugal e vemos o número de casos ou de mortes, vê-se sempre que o país é muito diferente.” Há duas manchas escuras sobre Lisboa e Porto, mas há zonas menos afectadas pela doença — como o Alentejo. “Portanto, se é para aliviar as medidas, na minha opinião, devíamos fazer isso assimetricamente, isto é, começando pelas regiões onde parece ser menos arriscado estar a aliviar”, defende.

Ricardo Mexia, médico de saúde pública e presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, concorda. “Foi já mais ou menos assumido que vamos fazer uma retoma faseada e gradual. E isso pode incluir diferentes actividades, mas também regiões”, começa por afirmar. “Optar por regiões, como, por exemplo, as regiões autónomas, onde o isolamento muitas vezes é um factor negativo, mas que neste caso concreto até pode ser protector”, ilustra.

Apesar disso, ambos os especialistas concordam que o valor de R deveria estar um pouco mais baixo para permitir dar estes passos com maior confiança. Manuel Carmo Gomes gostava que o valor de Rt “estivesse em 0,9 ou 0,8” e Ricardo Mexia diz apenas que tinha expectativa de que o número estivesse abaixo do um de “forma robusta” para que se pudesse compensar um eventual aumento de contágios “com outras medidas”.

Já Pedro Simas, virologista do Instituto de Medicina Molecular de Lisboa, tem uma opinião um pouco diferente. Acredita que o valor do número médio de contágios por infectado é positivo, relembrando a descida deste número desde que foram lançadas as medidas de isolamento social. “Um R de 1,04 são boas notícias, [o valor já] esteve em dois e em três. O aumento do número de casos já não está em fase exponencial; portanto, estamos num plateau onde é difícil baixar o R para 0. É impossível impedir por completo a interacção das pessoas”, defende.

Um levantamento das restrições a “várias velocidades” não é, no entanto, descartado. “Isto é um problema global, mas não é de resolução global. As soluções para cada país são diferentes, assim como as soluções dentro do país também têm de ser adaptadas e inteligentes”, resume Pedro Simas.

R 0,7, um número mágico?
Na Noruega, tomou-se a decisão de levantar restrições quando o valor de R0 chegasse a 0,7. Mas esse número não constitui uma regra, explica Manuel Carmo Gomes: “Não tem nenhuma base teórica.” “A regra é termos por dia um número de casos muito baixo, porque esta é uma doença que cresce exponencialmente e, com um descuido, duplica-se o número de casos em poucos dias.”

O especialista cita a experiência de países como a Áustria ou a Dinamarca, que começaram a levantar restrições em meados do mês. E o que aconteceu foi que a incidência da doença aumentou. Para Portugal, o conselho é fazer com que o número de casos diários desça até ao nível desses países. “[Neste momento] estamos pior do que eles estavam nessa altura”, explica. Mas este é apenas o ponto de vista epidemiológico — “isto é, sem pensar na economia, nos problemas sociais ou psicológicos”, diz Manuel Carmo Gomes. “Acho que não é recomendável [levantar medidas de forma global para já]. Mas a vida não acaba na epidemiologia. É mais do que isso. E isso tem de ser tido em atenção. É esse o trabalho do Governo.”

Pedro Simas admite alguma dificuldade na avaliação do momento exacto para o levantamento das restrições, defendendo que a criação de um regime de testes serológicos será fundamental para uma retoma da normalidade com maior segurança. “Os testes serológicos são uma ferramenta para controlarmos esta pandemia e sabermos o que está a acontecer, perceber como está a ser construída a imunidade populacional”, explica o especialista.

Um aumento do número médio de contágios​ na Páscoa
Questionados sobre o aumento do valor de R ao longo do mês de Abril (que passou de 0,95 no início do mês para 1,04) os três especialistas falam quase em uníssono. Houve claramente um afrouxamento do dever de distanciamento social dos portugueses, que coincidiu com a altura da Páscoa, resultando num aumento do valor de R.

“Olhamos para o calendário e o que vemos? A Páscoa”, explica Manuel Carmo Gomes. “Eu penso que naqueles dias, apesar de o Governo ter feito recomendações e de ter havido bloqueios nas estradas, houve um aumento de contágio, nomeadamente dentro das famílias, especialmente as que viviam no mesmo concelho.”

Mas a Páscoa pode não ser o único factor explicativo. Pedro Simas refere, para além do aumento dos contactos sociais, um “eventual aumento da capacidade de testagem”: “É muito simples: os casos aumentam com o aumento do contacto entre as pessoas e diminuem com a diminuição desse contacto. Há um facto que é a realidade: se se diagnosticar mais casos, é porque houve mais contactos, porque as mortes são uma pequena fracção e por isso um indicador muito forte. Pode existir um outro facto — o de haver maior capacidade de testagem. Obviamente se há três dias fazíamos, imaginemos, dez mil testes e hoje fazemos 50 mil, haverá um número maior de casos.”