Ana Cristina Pereira, in Público on-line
Equipas de rua reajustaram intervenção para assegurar entrega de metadona e troca de seringas. Traficantes até usam máscara, mas é maior o risco de intensificarem adulteração de drogas. Está a chegar à mão dos técnicos medicamento que reverte overdoses, mas em quantidade incipiente, como se fosse uma amostra.
s drogas ilícitas circulam, ainda que menos, com maior dificuldade, porventura mais adulteradas, nalguns sítios bem mais caras. Habituados às quebras de distribuição, os traficantes adaptam-se. As equipas de redução de riscos procuram um equilíbrio entre a necessidade de reduzir contactos e a necessidade de auxiliar quem consome. Às suas mãos começa a chegar naloxona, um spray nasal que pode reverter os efeitos de uma overdose de opiáceo.
Se parassem as equipas que trocam seringas usadas por novas, fazem acompanhamento psicológico, prestam cuidados de enfermagem, amiúde encaminham para outras estruturas, por vezes acompanhando a consultas, que fariam pessoas como Rosária, que todos os dias toma uma dose de metadona, droga de substituição opiácea? “Este é um serviço essencial. Não podem faltar. Deus me livre!”
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A estas equipas acorrem muitos consumidores de heroína e/ou cocaína com um sistema imunitário frágil. “Deviam ficar o tempo todo em confinamento”, como diz Teresa Sousa, coordenadora do GiruGaia, equipa da Agência Piaget para o Desenvolvimento. Não sendo da natureza destas equipas fingir que todos fazem o que é suposto, cada uma traçou um plano de contingência e, atendendo à sua realidade específica, reajustou-se.
Cada uma ao seu modo
A equipa da Crescer continua a fazer a sua rota pelos principais locais de consumo e tráfico da zona Ocidental de Lisboa – Casal Ventoso, Bairro da Cruz Vermelha, Portas de Benfica. “Continuamos a ir aos mesmos sítios, às mesmas horas, mas ficamos muito menos tempo”, revela o director, Américo Nave. “Fazemos basicamente troca de material. Há muito menos apoio psicológico – conversa, no fundo.”
A equipa da Norte Vida, que cobre os principais locais de consumo da zona Ocidental do Porto, concentrou a acção. Sai todos os dias, mas deixou de ir ao Viso e a Ramalde, só pára no Bairro Pinheiro Torres. Em vez de 40 minutos, permanece uma hora e meia. Atende pelo postigo. Forma-se uma fila estreita e espaçada. Os consumidores vigiam-se, assegura a coordenadora Manuela Moreira. Um tenta dar o golpe e logo outro chama à razão: “Ó amigo!” Têm de desinfectar as mãos ao entrar, de evitar tocar nas superfícies, de falar o menos possível lá dentro, de tomar a metadona e sair.
Para a equipa de rua do Centro Comunitário de Esmoriz fez mais sentido dispersar a intervenção pelo concelho de Ovar, atendendo apenas duas ou três pessoas em cada sítio. O giro fazia-se todos os dias em três horas. Faz-se duas vezes por semana em quatro ou cinco. Havendo reforço da equipa, o coordenador Nuno Rechena quer voltar ao ritmo diário, agora que o cerco foi levantado.
Os reajustes vão sendo feitos conforme vai ditando o terreno. A equipa da GiruGaia, por exemplo, passara de sete para três saídas por semana e agora faz duas, entregando a cada pessoa as doses diárias de metadona para ir tomando ao longo da semana. “Há pessoas que não conseguem gerir”, torna Teresa Sousa. “Com algumas, estamos a articular com familiares. Para duas pessoas, vamos voltar e entregar duas vezes por semana.”
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TIAGO LOPES
Para compensar a retirada parcial, tentam manter contacto telefónico com as pessoas que acompanham, embora não com todas, até porque nem todas têm telefone, algumas vivem na rua. “Não têm retaguarda familiar, não têm proximidade com médico de família, temos de manter alguma regularidade de contactos”, salienta Marília Lopes, coordenadora da equipa de rua do Centro Social de Paramos, em Espinho. Em caso de necessidade, vão ter com a pessoa.
Traficantes também usam máscaras
Seguindo a unidade móvel por Espinho, que tem parte dos utentes no centro de acolhimento de emergência montado no parque de campismo, pode ver-se como a equipa tenta sensibilizar, de forma reiterada, as pessoas que vai encontrando a não sair de casa, a lavar as mãos com regularidade, a tossir ou a espirrar para o cotovelo ou para um lenço descartável, a não levar as mãos à cara, a manter distância social e, claro, a não partilhar seringas, tubos, isqueiros, nada. De vez em quando, lá vem alguém que pede uma máscara.
– Para que tens necessidade de usar máscara? –, pergunta Marília a um homem, à saída de Espinho.
– Covid –, responde.
– Sabes que máscara que te vamos dar só protege os outros de ti, não te protege dos outros.
– Então não preciso.
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– Vou explicar-te porque uso máscara. Estou com 40 pessoas sempre que venho à rua. A probabilidade de me infectar é gigante. Para te proteger e proteger-me, uso máscara. Tu usares uma máscara das que te posso dar [cirúrgica] não te vai fazer nada. Não tenho uma destas para te dar. Estou a reutilizar a minha. Não queres a minha babada, pois não?
– Não.
– O que tens de fazer é manter distância.
Todas as equipas têm pedidos de máscaras. E, de forma directa ou indirecta, tratam de sensibilizar até os traficantes. O movimento pode ser grande nas bocas de tráfico. Há sempre quem esteja a vender, quem esteja a “capear” (a chamar clientela para o seu traficante), quem assuma o papel de “pica” ou “enfermeiro” (cuida dos outros). E essa dinâmica também se reajustou à pandemia de covid-19.
– Olha, tens dito à malta para ter cuidado? –, pergunta Marília a Rosário, que vive em Espinho mas costuma ir comprar crack ao Porto.
– Eles andam lá de luvas e de máscaras, andam.
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– E desinfectam as luvas?
– Anda lá um com uma bisnagazinha. Agora, se desinfecta…
– Quem usa máscara?
– Os que andam a vender. E os “capeadores” também andam de máscara.
Não estão todos a fazê-lo. Talvez os que o fazem tenham uma vantagem competitiva, como diz Rui Coimbra, da direcção da CASO (Consumidores Associados Sobrevivem Organizados).
Discutir com a tutela e reajustar
Em tempo de pandemia global, o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) permite alguma flexibilidade no uso do material e já se disponibilizou para reforçar os orçamentos das equipas. Isso pode traduzir-se em diversas práticas. Solange Ascensão, coordenadora da equipa de rua GiruSetúbal, pede aos utentes que desinfectem “o pacote em que a droga vem”, as mãos antes de consumir, o material. Para facilitar, tem distribuído toalhetes extra.
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Equipa de rua do Centro Social de Paramos. TIAGO LOPES
No princípio, faltou até material de protecção individual. E nem a equipa de Ovar deixou de distribuir metadona. “Fizemos chegar viseiras e máscaras, de acordo com o levantamento de necessidades feito nas equipas de rua”, afiança João Goulão, director nacional do SICAD. Para as equipas técnicas, não para os consumidores.
Houve um canal que se abriu. Uma vez por semana, o SICAD reúne-se, através da Internet, com a R3 – Riscos Reduzidos em Rede, que agrega a maior parte das equipas de redução de riscos e associações de pessoas que consomem drogas e/ou fazem trabalho sexual. Há pouco, juntaram-se-lhes a Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (DICAD) e outras equipas de rua. “Podemos, de uma forma aberta e franca, discutir os problemas e encontrar soluções”, congratula-se Rui Coimbra, que integra essas reuniões. “Está a nascer uma resposta estratégica, articulada entre as equipas de proximidade e os organismos estatais”, alegra-se também Marta Pinto, co-fundadora da R3 e investigadora da Universidade do Porto.
Suspendeu-se o trabalho sexual, o pequeno biscate, o arrumo de carro, a mendicidade. “Saindo do litoral e da cidade, o preço da droga duplica. Por causa do risco. Uma pedra de crack, que no Porto custa 5 euros, aqui [em Viseu] pode ser 15 ou 20, facilmente”, exemplifica Coimbra. Sobe a tentação para fazer “sociedades”, isto é, comprar droga a meias e partilhá-la. No giro que faz em Setúbal, Solange Ascensão já nota retrocesso. “Temos pessoas que fumavam e estão a injectar-se. Esta via dá mais moka com menos quantidade.”
Um medicamento para reverter overdoses
Um pouco por todo o lado se fala no risco de mortes associadas. “O facto de haver uma possibilidade real de escassearem as substâncias ilícitas pode fazer com que sofram uma adulteração diferente da habitual ou mais intensa”, explica Marta Pinto. “Podem ser tranquilizantes, benzodiazepinas, mas também podem ser outras substâncias, potencialmente letais.” Por isso, importa ter meios de reverter overdoses.
Desde a semana passada, começou a chegar às equipas do Norte do país naloxona, o tal medicamento que reverte overdose de opiáceo. A equipa do Centro Social de Paramos, por exemplo, recebeu duas embalagens, válidas até ao final de Abril. A equipa da Norte Vida recebeu uma. Em número insuficiente. Quase como se fossem amostras. A equipa do Centro Comunitário de Esmoriz, na região centro, nada.
Já antes chegara a Lisboa, mas com a indicação de que deviam ficar na posse das equipas, não dos consumidores. A Crescer, por exemplo, não lhe deu uso. Quem presencia overdoses não são as equipas de rua, mas são familiares, vizinhos, outros consumidores. “Agora temos autorização para distribuir pela comunidade e isso é que parece interessante”, adianta Américo Nave. Está tudo na aurora. Vão “iniciar formação a pares e líderes da comunidade, pessoas que estão 24 horas nos bairros de consumo e podem aplicar o medicamento, se for preciso”. Terão de ser gente que “esteja bastante tempo no terreno, que tenha uma boa relação com os outros e alguma liderança”. Se alguém entrar em overdose, pulveriza uma narina. Não funcionando, pulveriza outra. E chama a emergência médica.
“A naloxona está disponível para ser distribuída usando o circuito de distribuição da metadona às Administrações Regionais de Saúde”, garante Goulão. “Desde Janeiro, está disponível em Lisboa e Vale do Tejo. Tem chegado às DICAD, conforme as solicitações”, diz ainda, lembrando que os serviços locais e regionais não são controlados pelo SICAD. Em 2012, o Governo decidiu desmantelar o Instituto da Droga e Toxicodependência, segmentando respostas por cinco administrações. O actual executivo preparava-se para voltar a concentrar tudo numa só estrutura.
Apesar do esforço, não foi possível manter o nível de acesso aos cuidados de saúde. “Do ponto de vista das doenças infecto-contagiosas, temos consultas desmarcadas e sem data”, lamenta Marília Lopes. “Estamos a falar de VIH e hepatite C. A quem já estava em tratamento, a farmácia continua a disponibilizar a terapêutica. Não tem é consultas. Quem ia iniciar terapêutica, ficou em suspenso.” No sábado, a ministra da Saúde, Marta Temido, disse que as consultas e cirurgias adiadas por causa da pandemia iam começar a ser reagendadas.
Mesmo assim, suspira de alívio quem já muito se preocupou. Nem sempre o princípio da redução de danos é compreendido. “Não deixar ninguém para trás é cuidar de todos”, enfatiza Marta Pinto. “Criar as condições para que as pessoas cuidem de si próprias, mesmo que consumam substancias psicoactivas, é proteger as pessoas que usam drogas, mas também as suas famílias e as suas comunidades.”
Rui Coimbra, sempre tão crítico, elogia: “Estão todos a dar o litro: SICAD, DICAD, equipas de rua. Toda a gente está a ser extraordinária. São heróis. O sistema estava tão fragilizado. Mesmo sem condições, tudo fizeram para as pessoas não ficaram sem metadona. Teria sido catastrófico.” Não será suficiente. “Há maior dificuldade [em angariar dinheiro e comprar produto], mais risco, mais violência, mais crime. É o que é.”