Beatriz Lopes (reportagem e fotos*), in RR
Não precisam só de ajuda para vestir, tomar banho, fazer camas e limpar e arejar a casa. Essa ajuda têm-na vinda de auxiliares de geriatria da Santa Casa da Misericórdia. Agora, mais encerrados ainda do que antes por causa da pandemia, estes idosos de Lisboa precisam de quem os ouça. “É o que quero: eu quero é falar. Falar do quê? Falar do medo. Vivemos um medo terrível. É muito difícil combater um inimigo invisível. É o pavor.”
Mete máscara, tira máscara. Mete bata, tira bata. Mete cobre-pés, tira cobre-pés. E o mesmo acontece com luvas, touca e viseira. A carrinha da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa marca 22ºC lá fora, mas os cuidados de proteção que as auxiliares de geriatria e apoio à comunidade (AGAC) têm de ter para apoiar os 210 utentes de três freguesias lisboetas, maioritariamente idosos, não podem ser vencidos pelo cansaço.
Ao toque da campainha, há quem lhes chame “Santas”, “uma bênção de Deus” ou “anjinhas” , como se ouve do auscultador de um quarto andar de um prédio nos Anjos, onde vive Jaquelina, com 90 anos. Sem filhos, e viúva há dois anos, diz ainda ter “uma cabeça nova”, mas estes têm sido dias difíceis para quem não gosta de “deixar a língua em casa” e se vê aflita com as “malditas cataratas”. Uns dias são mais difíceis do que outros, até porque em dias frios diz não conseguir mexer as pernas e não se habitua ao andarilho – a que, de forma repugnante, chama de “aquela coisa”.
“Tenho passado os meus dias muito contrariada. Ando agarrada às paredes. Estava habituada a trabalhar e a fazer a minha vida e de repente caí e parti logo o braço. Depois meti o pé na argola – que é como quem diz no tapete – e parti uma perna. E agora para me mexer tenho muita dificuldade. Por isso é que dou trabalho às minhas meninas", explica.
O apoio domiciliário da Santa Casa já é longo, desde os tempos em que o marido era auxiliado por estar acamado. Jaquelina recebe apoio na alimentação, na higiene e, sendo diabética, tem sempre ajuda na medição da taxa de açúcar no sangue e na toma da medicação. Mas há um som azucrinante que em tempos de pandemia ecoa nas paredes onde outrora chegavam a estar dois rádios ligados: chama-se solidão e é agora a única música que teima em fazer-se ouvir quando está sozinha.
“Os rádios? Eram do meu marido. Agora perderam o encanto. Ele gostava muito de música. Deixou-nos esses dois rádios e essas cassetes todas. Agora não quero ligar isso. Às vezes experimento ligar a televisão e fecho os olhos para não ver. Mas também só ouço desgraças. Agora querem abrir as escolas e as creches, estão com muita pressa, estão a ir com muita sede ao pote . Com tantos ainda a morrer e outros tantos internados."
As técnicas da Santa Casa vão fazendo esforços para que rebobine a cassete e se lembre de coisas boas, do tempo em que era operadora de caixa, o emprego com que sempre sonhou e desempenhou por mais de 30 anos. Mas a tarefa parece não ser fácil, porque “a vida foi dura”.
“Tinha 11 anos quando morreu o meu pai. A minha mãe era modista – e muito boa –, morreu já com 86. Nunca estive acostumada a estar sozinha. Há dois anos, morreu o meu marido. Olhe aí o retrato dele: tem mesmo carinha de bom, tinha 1.82m e pesava cento-e-tal quilos. Tenho saudades de tudo, até o que era mau seria bom agora" .
Agora diz estar a passar por “uma guerra que veio limpar pessoas , porque já estava cá gente a mais”. E não esconde o medo que tem de “Deus a levar”. “Medo, tenho de morrer. Até uma galinha tem medo de morrer. Veja lá se quando quer apanhar uma galinha ela não foge e nunca mais a apanha. Medo toda a gente tem."
A conversa faz-se também de silêncios. Mas há um cheiro a cozido à portuguesa que sai da cozinha e que a faz despertar. Jaquelina conta ainda com o apoio de Maria, empregada doméstica, há já oito anos. Mas o apoio doméstico não se faz apenas de aspirador na mão, até porque agora, diz, é como “uma bebé”.
“Antes quero que ela esteja ao pé de mim a conversar comigo do que limpe o pó. Digo sempre “oh Maria, limpa depois, anda para aqui um bocadinho”. Não me ralo que ela o faça depois. É a minha Maria, é muito séria, confio-lhe tudo, até o troco das compras. Quando ela sai é que vejo a diferença, já não tenho com quem falar."
É quando a porta fecha que só se ouve o relógio da sala. O telefone, esse, toca duas vezes ao dia, de manhã e à noite, quando um primo que não vive perto, de quem fala como o filho que Deus não lhe deu, lhe liga para saber como tem passado.
Do apoio da Misericórdia já não passa sem ele, mas insiste em recusar meter o pé fora de casa, mesmo depois da pandemia da Covid-19 passar. “A Santa Casa já me convidou para ir aos passeios. Mas olhe para mim: o trabalho que eu dou só para meter uma rampa na camioneta. Já tenho o coração muito cansado. Muito cansado.”
“Nos primeiros dias em que tive de ficar em casa tinha stresse, tinha neuras, uma coisa horrível”
Seguimos para o Areeiro, onde vive Maria Helena, 93 anos, solteira, não tem filhos nem outros familiares. A cozinha tornou-se agora um atelier de pintura, uma história e paixão já antiga que se escreve, ou traça, desde os seus 12 anos, altura em que tinha presente que seria pintora.
No entanto, não dispensa apresentações: “Maria Helena Leite. Este é o meu nome artístico. Mas sou Maria Helena Patrício Leite.”
Tem passado os últimos dias de pincel na mão, ao som de uma arara que tem no piso superior. A monotonia levou-a a mudar-se para a cozinha. Recusa a companhia da passarada – ou não fosse o silêncio também fonte de inspiração para os artistas.
“Levanto-me, lavo a cara – sabe Deus como – e depois venho tomar o pequeno-almoço. Vou pintar até às 11h00. Depois subo para dar comida aos passarinhos. Depois desço para almoçar. E volto a pintar até às 18h00. Sabe que isto depois passa a ser uma loucura. Nos primeiros dias em que tive de ficar em casa tinha stresse, tinha neuras, uma coisa horrível .”
Um rádio e uma televisão ligados, sublinha, não são suficientes para lhe encherem a casa. Nesta altura, Maria Helena recebe duas respostas sociais, da Santa Casa e do Centro de Dia Nossa Senhora da Pena, na freguesia de Arroios. Recebe refeições à segunda e quinta-feira, precisa de ter supervisão no banho e ajuda em tarefas pontuais, como “fazer as camas com lençóis bem esticadinhos”.
Não lidou bem com a decisão de ficar confinada a quatro paredes e ver “o resto da vida, já curto,” suspenso – até porque ensinava outros a pintar no centro de dia e participava num coro da Misericórdia. Depois de avaliado o nível de ansiedade e do medo, passou recentemente a usufruir de uma linha telefónica de apoio psicológico por se sentir “muito sozinha”.
“Tenho um psicólogo que se chama Ricardo. Muito gentil. E diz que agora vai falar comigo mais vezes. Isso é o que quero. Eu quero é falar.” E de que falam? “Do medo. Todos nós vivemos um medo terrível. É muito difícil combater um inimigo invisível . É o pavor.”
Maria Helena quer deixar bem presente que esta é uma pandemia que “não afeta apenas idosos do interior” e que o medo fez com que outras conquistas recentes se tornassem em derrotas antigas.
“O que mais me custa é não poder andar; eu caminhava muito, viajei muito. Já nos últimos tempos estava limitada, porque tinha de usar moletas com medo de cair. Eu só queria andar, esquecer-me que sofri muito como toda a minha geração. Sabe que só me libertei quando fui para o centro de dia, tornei-me noutra pessoa.”
O apoio social fez com que voltasse a pintar depois de 15 anos parada, período em que se tornou cuidadora do pai, depois do falecimento da mãe. Sentada no sofá da sala, que mais se assemelha a um museu, e com um retrato da mãe que pintou, na parede atrás de si, perde-se em recortes de jornais, onde foi notícia, e nos trabalhos que a fizeram percorrer o mundo.
“Fiz várias exposições, ganhei uma bolsa para estudar em Itália e lá fui, depois de tirar o curso na Escola Artística António Arroio. Viajei muito e o meu maior prazer era trazer coisas para casa. Continuo a ver as ruas, os caminhos, as galerias de Itália, Áustria, Alemanha, em França: sinto que faço os mesmos caminhos", recorda.
E prossegue em viagem: “Aqui pode ver o grupo de artistas portugueses onde eu participei, vários artistas da elite, como o João Mário, José Núncio. Olhe eu aqui: Maria Helena Leite. Olhe aqui: com este retrato a pastel consegui a primeira medalha!”.
Daqui a uma semana ficará pronto o quadro da costa alentejana a que se tem dedicado. Na tela ainda só se vê o azul e o branco, mas surgirá algo entre Vila Nova de Milfontes e a Zambujeira do Mar: é lá que se esconde “a esperança e a tranquilidade”. “Ah, e Almograve!”, suspira.
“Há uma diferença entre estar sozinho e viver em solidão”
Abre-se a porta de um segundo direito, na zona do Areeiro, onde os sorrisos acolhem primeiro do que as palavras. Do lado de lá, João, totalmente dependente, e a sua esposa e principal cuidadora, Margarida.
Vivem sozinhos e resguardados no casulo das memórias que guardam dos cinco filhos que estão em Angola. Falar de solidão dói, mas sempre que recebem alguém em casa, ainda que desconhecido, há uma espécie de metamorfose e esforço para que as histórias do passado batam asas.
“Quando era técnico oficial de contas, em Angola, tinha uma vida risonha. Aquilo que era o básico eu tinha: meio de transporte, uma casa minimamente confortável, relacionava-me com muita gente, muita gente mesmo! Imagine: quando o Presidente da República [Agostinho Neto] fazia anos, era convidado. E dávamos as mãos. Devido à minha profissão, às vezes era-me confiado determinadas missões, ir avaliar um projeto antes de recebermos os parceiros estrangeiros – ao ponto de, por exemplo, ser alugado um avião para ser transportado de Luanda para outra província. Um avião só para duas pessoas!”, exclama.
São memórias que, por mais que queira, aos 66 anos, não lhe preenchem o vazio. Nesta altura de isolamento social, a única coisa que João queria era “um abraço de um filho, que levantasse o ânimo” .
“Há uma diferença entre estar sozinho e viver em solidão. E há casas cheias de gente solitária . Este é um vírus que nos afeta a todos. Não importa de que raça somos, não importa a nacionalidade, se é rico ou pobre: todos nós seremos profundamente afetados.”
Há mais de 10 anos, João foi obrigado a ficar por Portugal. Contraiu uma bactéria que lhe comprometeu a coluna vertebral, ficando tetraplégico. Chegou a ter uma meningite, a ficar em coma e hoje depara-se com outros problemas associados, como os tratamentos de hemodiálise que tem de fazer três vezes por semana. É só nessas alturas que vê a luz do dia, talvez daí a insistência em pedir à “Guida” que abra todas as janelas de casa. “A partir de agora o mundo não será o mesmo”, murmura.
No Serviço de Nefrologia e Transplantação Renal, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde é seguido, também houve mudanças e medidas de mitigação do risco de contágio da Covid-19. “Na sala de espera os doentes de hemodiálise estão juntos, mas depois há um circuito paralelo de saída para não nos cruzarmos com outros doentes. O tratamento tinha a duração de quatro horas e 14 minutos; reduziram para três horas”.
Para que o tempo passe mais rápido, João leva a Bíblia, já gasta, para o tratamento. É também é à fé que se agarra nesta altura. É a única coisa a que se pode agarrar, depois de ter vendido tudo o que tinha em Angola para investir no apartamento, numa cama articulada e no elevador de transferência de que precisava.
O apoio monetário chega através dos filhos. Mas “chega tarde”, queixa-se Margarida, a mulher: “Os bancos em Angola são muito lentos, há muitos bancários em casa e o dinheiro demora muito a chegar. Esta dependência económica veio estragar-nos a vida. Primeiro têm de transformar o kwanza em dólar e, depois, em euro. Vai-se tudo! O que os meus filhos trabalham é para os pais."
À hora do pequeno-almoço, com uma pêra cortada, um pão e um chá de camomila, é também por aqueles que, neste momento, atravessam dificuldades financeiras que João reza.
"Senhor Jeová, queremos agradecer-lhe por este alimento físico que pôs diante de nós, abençoe o mesma, e também a “Guida” que o preparou. Peço que este privilégio não seja só para mim, mas para todos os que têm a necessidade do pão de cada dia. Continue também a alimentar-nos espiritualmente e às pessoas famintas: dê-lhes o mínimo para que se possam alimentar, para que possam ter as forças físicas para poderem fazer as suas tarefas."
O agradecimento diário vai também para a Santa Casa da Misericórdia. João recebe visitas das auxiliares de geriatria e apoio à comunidade de segunda a domingo, duas vezes por dia, para higiene pessoal, posicionamento e vestir.
“A Santa Casa, como eu digo à minha esposa e aos meus filhos, para nós é uma bênção. Veio para ajudar mesmo os necessitados. Porque eu pergunto-me: o que seria de nós se não fosse a Santa Casa? A Margarida também tem problemas de saúde. E eu aqui, a precisar de alguém que me vista, que limpe as fezes… Este é um serviço que tem de ser reconhecido.”
Margarida, visivelmente emocionada, acrescenta: “Se não houvesse este tipo de auxílio, não sei como seria para os idosos e para aqueles que são altamente debilitados. Morreriam antes do tempo. O meu homem está vivo graças a isto."
Famílias estão a dar mais apoio na pandemia
Em isolamento, e sendo um dos grupos que apresenta um maior risco de doença por Covid-19, cerca de 210 idosos, de três das 24 freguesias de Lisboa, estão a receber apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que tem verificado uma ligeira quebra no número de pedidos de ajuda. Porquê? Pela resposta familiar que tem surgido.
“Estamos a acompanhar, por dia, cerca de 210 pessoas. Costumamos acompanhar, por norma, cerca de 350, mas, neste momento, devido à pandemia e ao isolamento, houve pessoas e famílias que preferiram ficar em casa sem o nosso serviço, sendo este apoio garantido por familiares ou pessoas amigas”, explica Ana Nascimento, diretora do Serviço de Apoio Domiciliário (SAD) da Unidade de Desenvolvimento e Intervenção de Proximidade da Alameda, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Com 54 auxiliares de geriatria, e apoio à comunidade no terreno, o serviço domiciliário presta apoio desde a higiene pessoal à entrega de refeições, do tratamento de roupa à organização das caixas da medicação. Ou até idas ao supermercado, cujos pedidos têm aumentado.
“Os pedidos são diversos. No entanto, os que mais se verificam durante a pandemia são o apoio para a realização de compras no exterior – como, por exemplo, compras no supermercado e farmácia –, o fornecimento de alimentação refrigerada e, também, o apoio na higiene pessoal para pessoas mais dependentes e que não apresentam rede de suporte durante a pandemia.”
No que respeita ao fornecimento de alimentação, o apoio pode ser adaptado a cada utente e toda a segurança é garantida.
“Depende das situações e das necessidades de cada pessoa. Há pessoas que têm almoço e jantar. Há outras que voltam a comer a sopa do almoço ao jantar. Há pessoas que só têm ao fim de semana, porque antes da pandemia já frequentavam o centro de dia. A segurança é garantida na medida em que a Santa Casa contratou a Nordigal para a distribuição das refeições. Mas os senhores ajudantes motoristas não podem entrar da porta para dentro; são os auxiliares da Santa Casa que o fazem”.
No âmbito da pandemia de Covid-19, o dever do cumprimento de isolamento social poderá tornar-se mais difícil para os mais velhos, mas o SAD Alameda garante estar atento, “transmitindo frequentemente as medidas de prevenção da Direção-Geral da Saúde” e “tentando substituir-se nas saídas à rua dos idosos, no que diz respeito às compras ou outras diligências necessárias”.
No apoio da Santa Casa da Misericórdia está ainda previsto o acompanhamento psicológico ou a chamada teleassistência.
Os idosos poderão contar com a ajuda de uma equipa de apoio psicológico, constituída pela Direção de Desenvolvimento e Intervenção de Proximidade da Santa Casa da Misericórdia. Ajuda destinada a utentes beneficiários das respostas de Serviço de Apoio Domiciliário, Centro de Dia e Equipas de Apoio a Idosos, no período de vigência do Plano de Contingência e que apresentem sentimentos associados à solidão, depressão, ansiedade, medo, tristeza e preocupação, entre outros. A ideia é garantir um apoio mais focado aos utentes que revelem uma maior necessidade de apoio psicológico nesta fase.