André Borges Vieira e Ana Marques Maia, in Público on-line
Uma viagem pela Baixa, onde agora, com as ruas sem gente, droga, mendicidade e indigência tornaram-se mais visíveis, embora sempre tenham existido, mas camufladas pelo ruído visual.
Na rua Mouzinho da Silveira, a meio da tarde, prepara-se às claras uma dose injectável numa espécie de acampamento improvisado na fonte Monumental, numa das artérias onde se concentram restaurantes que fazem parte do roteiro gourmet de topo da cidade do Porto. Mais acima, frente a estação de São Bento, zona turística por excelência, na entrada de um posto de turismo de portas encerradas, esticam-se umas pratas que servirão de suporte para matar a ressaca. No mercado da Sé, há um grupo que faz o mesmo, não muito longe da catedral, que é visita obrigatória para quem vem de fora.
Tudo isto faz-se à luz do dia, à vista de todos, numa espécie de loop diário de um calendário que mais parece um disco riscado, em que os dias parecem repetir-se e facilmente confundem-se uns com os outros.
Na rua de Sá da Bandeira concentram-se pequenos grupos de garrafa na mão, talvez acabadas de comprar, frente a dois supermercados. Perto dali há quem remexa os contentores do lixo e revire uma mala deixada para trás – uma parecida com as muitas que até há dois meses compunham uma banda sonora de ruído ao trilhar a calçada dos passeios. Catam-se os despojos dos que ainda há bem pouco tempo enchiam as esplanadas a beber vinho do Porto e a provar tapas, que na verdade são petiscos, e outros pratos very typical que alguns portuenses nunca provaram.
Dentro de um carro, faz-se uma viagem pela Baixa - da Ribeira até à zona mais alta, já quase na Praça da República, com uns desvios até à marginal do rio, já em Massarelos, onde se ouviam os fados na tasca da Piedade, antes de ter encerrado temporariamente até que a covid-19 decida devolver-nos a normalidade. Perto da varanda onde a proprietária do estabelecimento montava a esplanada que facilmente enchia, mas agora está arrumada, a uns dois minutos de carro, há quem ande de viatura em viatura estacionada, com gente lá dentro, em transacções obscuras, mas, mais uma vez, possível de assistir às claras.
De volta ao centro da cidade, passamos por alguém que deambula com uma garrafa na mão. Ainda há umas horas a mesma pessoa estava na entrada da rua do Almada. Na rua José Falcão há um casal de idosos que tenta escapar a alguém que se aproxima para pedir uma moeda, que, sem máscara e sem cumprir o distanciamento social, não descola.
Na Baixa circulam também os poucos que saem para fazer compras ou nas deslocações trabalho-casa. Há os que olham com desconfiança para quem se aproxima. Não respondem quando são chamados. Aceleram o passo. Fazem de conta que não é com eles. Perto da Cordoaria, voltamos a ver quem peça uma moeda a quem passa. Olha-se para trás só para garantir que ainda está longe. Volta-se a olhar para a frente e acelera-se o passo. Mas há uns meses atrás seria só algo normal.
Parar nos semáforos torna possível ser abordado por quem tente conseguir uma moeda. Noutras zonas há semanas que deixou de passar gente em número suficiente. Deposita-se agora a esperança num carro que pára.
Tudo isto acontece todos os dias, nas mesmas ruas, onde se vêem as mesmas caras, nas mesmas rotinas. Só que estas pessoas sempre estiveram nos mesmos sítios, com as mesmas rotinas e com as mesmas necessidades e problemas. Mas agora, como noutras cidades, o “esqueleto” do Porto está exposto.