24.4.20

Agora há TDT na casa onde Júlia trabalha para que os filhos possam ver as aulas

Samuel Silva, in Público on-line

A telescola entrou pela casa das famílias e muitas estão ainda a adaptar-se a este mundo novo, que não é igual para todos. O #EstudoEmCasa obrigou a improvisar soluções para quem não tem TDT, computador ou tem apenas um telemóvel com acesso à Internet para ser partilhado por várias crianças.

Começa a aula de Inglês e Catarina soergue-se sobre a mesa redonda, como se ajustasse a concentração. Apoia o queixo sobre as mãos e fixa o ecrã. É o segundo dia de telescola, mas o primeiro nesta sala de aulas improvisada na cozinha. Na véspera, tinha estado ali um técnico a configurar a Televisão Digital Terreste (TDT) para que esta aluna do 8.º ano e os dois irmãos, mais novos, pudessem começar a acompanhar as lições na TV.

Júlia Campos é a mãe de Catarina e cuida de uma pessoa de 93 anos. Nas férias, os filhos já a costumavam acompanhar para o local de trabalho, uma quinta às portas de Cabeceiras de Basto, não muito longe da aldeia onde vivem. A antiga casa dos caseiros, ao lado do edifício principal da propriedade, é há muito um segundo lar para as três crianças. No momento em que aulas foram suspensas, foi para ali que passaram a ir todos os dias.

Quando o Governo anunciou a transmissão de conteúdos pedagógicos na televisão, a nova rotina passou a conter um problema: o televisor daquela casa não tinha acesso à RTP Memória, o canal que emite, de segunda a sexta-feira, o #EstudoEmCasa. “Felizmente, tenho uns patrões impecáveis”. O elogio é de Júlia Campos. A família para quem trabalha há cinco anos mandou instalar TDT para que os seus três filhos pudessem assistir às aulas. A impressora da casa principal está igualmente à disposição das crianças.

Catarina manteve-se imóvel durante longos minutos. A imagem no velho ecrã é mais amarelada e menos nítida do que nos televisores modernos. A meio da aula, decide trocar de lugar à mesa com o irmão mais novo, Gonçalo, para ficar mais próxima. “Também me disseram que se fosse preciso punham aqui uma televisão mais moderna”, acrescenta a mãe.

Esta casa em Cabeceiras de Basto não foi a única onde, nas últimas semanas, foi instalada TDT para que os estudantes pudessem ter acesso à telescola. Quando as aulas foram suspensas, o director do Agrupamento de Escolas de Ponte da Barca, Carlos Alberto Louro, foi um dos que explicou que alguns dos seus alunos, sobretudo os que vivem nas zonas mais próximas do Parque Nacional da Peneda Gerês não tinham acesso à Internet nem, em muitos casos, à televisão. “Até a cobertura da rede telefónica é muito fraca”, contava.

“Toda a gente está servida agora”, diz ao PÚBLICO. Nas últimas semanas, as famílias instalaram soluções alternativas, como o serviço Direct To Home, um complemento via satélite para as chamadas “zonas brancas” da TDT. Apesar de ser a tecnologia com maior penetração no território nacional, a cobertura por via terrestre não é de 100%.

Enquanto Catarina assiste à aula de Inglês do #EstudoEmCasa, Rodrigo, que é três anos mais novo, também está a fazer os trabalhos de casa da mesma disciplina. Em cima do caderno tem o telemóvel da mãe, de onde copia os nomes de produtos alimentares. “Como ele faz tudo direitinho, também fez os desenhos, mas não era preciso”, comenta Júlia Campos. O filho não se distrai com o elogio. É raro tirar os olhos dos livros e dos cadernos.

Aquele telefone é o único acesso à Internet de que dispõem. Catarina, Rodrigo e Gonçalo fizeram da mesa da cozinha o seu novo espaço de trabalho e daquele equipamento o seu ponto de contacto com os professores. “A primeira semana foi terrível”, conta Júlia Campos. Recebia mensagens dos professores “de manhã à noite” e teve que lhes pedir que passassem a enviar os materiais ao final do dia, “senão, não tinha descanso”.

“O António é a prioridade”
Na casa de Mónica Pereira, no bairro do Cerco, no Porto, também só há um telemóvel com acesso à Internet. Está desempregada e o seu telefone tem apenas as funções básicas. O único dispositivo inteligente pertence a Vânia, a mais velha dos seus quatro filhos.

“Tem sido um pouco complicado” gerir a situação, conta esta estudante, a frequentar o 10.º ano. Por vezes, os professores comunicam que haverá uma aula por teleconferência “muito em cima da hora”. “Quando me avisam, já estou com o António”, o irmão mais novo, a frequentar o 2.º ano, que ela ajuda diariamente com os estudos. Ele “é a prioridade”.

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Naquela manhã, Vânia tinha perdido uma aula por esse motivo. Uma colega acabou por lhe passar os apontamentos da aula, que servirão para tentar compensar a situação, quando mais tarde voltar para o seu quarto para estudar. Por agora, é António ainda o foco da sua atenção.

Sentam-se na sala de jantar, o único espaço partilhado entre os vários quartos do apartamento. A mesa das refeições foi convertida em carteira de escola. Há cadernos, lápis e livros espalhados e os dois irmãos somam moedas num dos exercícios propostos pelo manual de Matemática. Ao contrário de António – e de Beatriz e Fernando, os outros dois elementos da família – Vânia Pereira não tem conteúdos destinados ao seu ano de escolaridade no #EstudoEmCasa. E, ao contrário dos colegas mais velhos do ensino secundário, não terá a hipótese de voltar às aulas presenciais neste este ano lectivo. “Eu fico só pelo Zoom”, atira.

Uns metros acima, no mesmo bairro, Tânia Campos aguarda por uma reunião na mesma plataforma de videoconferência que se tornou omnipresente na vida de muitas famílias nas últimas semanas. É mãe de duas crianças e tem um encontro marcado com a professora do mais novo, Nuno, que estuda no 4.º ano.“Nunca usei tanto aquilo na minha vida”, comenta, apontando para o telemóvel, agora nas mãos do filho mais velho, Rui.

Rui e Nuno são alunos premiados pela EB1 do Cerco, mesmo ao lado de casa. Não têm tido grandes dificuldades em continuar a aprender, mesmo que a sala de aulas esteja reduzida aos 17 centímetros do ecrã do telemóvel da mãe.

Tentaram manter as mesmas rotinas do tempo em que iam à escola. Deitam-se às 21h30, para às 8h00 estarem a pé. Rui, que anda no 5.º ano, é o primeiro a apresentar-se, com um “bom dia” enviado numa mensagem de WhatsApp, que serve para dizer “presente” aos professores. Em resposta, recebe da directora de turma as tarefas do dia.

“O Nuno começa mais tarde, o que ajuda um bocadinho a gerir o telefone”, conta Tânia, grávida no final do tempo do terceiro filho, uma menina. Quando o filho mais novo já está “engrenado”, Rui volta a pegar no telemóvel, para começar a fotografar os exercícios e enviá-los por email para os professores. É assim a nova rotina da família.

Tânia mostra mais dificuldades em gerir os tempos livres, com dois rapazes habituados a praticar desporto e que, há mais de 40 dias, não saem do apartamento onde vivem. Na mesma mesa onde, durante a manhã, há pão, fruta e os livros de ambos, no final do dia às vezes monta-se uma mesa de pingue-pongue.

“Da última vez fiz a rede com Legos deles”, ri-se a mãe. Rui treinava ténis de mesa duas vezes por semana na escola e, aos sábados, participava em torneios. Tal como as aulas, está tudo suspenso por agora. Apesar do esforço da mãe, não é a mesma coisa: “Eu mando com a força que mando no campo, mas a bola sai logo”.

Duas técnicas da Cáritas de Aveiro entram em casa de Marisa Cunha. Trazem consigo uma pasta de documentos cor de laranja de onde tiram um molho de folhas A4. São as fichas de exercícios que, nos últimos dias, os professores dos seus três filhos têm enviado por correio electrónico para os alunos responderem em casa.

Esta não é a primeira visita do género. Desde o início da suspensão das aulas presenciais que Marisa encaminha os ficheiros para as técnicas “Maré de Escolhas” que, duas vezes por semana, lhe trazem os materiais impressos. Os seus três filhos participam regularmente em actividades deste projecto financiado pelo Programa Escolhas. Esta ajuda também tem chegado a outras famílias de Aveiro.

Marisa Cunha segura nas fichas impressas e começa a distribui-las pelos três filhos, que estão sentados diante dela no sofá azul. “4.º ano”, “6.º ano”, “5.º ano”. “5.º ano”, “5.º ano”, repete, mais do que uma vez. “Tenho sempre mais trabalho”, queixa-se Micael, o irmão do meio, que depois explica como estava ansioso que os exercícios em papel chegassem a casa para poder resolvê-los. Nos últimos dias não tinha conseguido fazer parte dos trabalhos enviados pelos professores.

Assistimos à primeira aula da telescola com alunos do 1.º ciclo
As fichas impressas resolvem parte do problema para uma família que não tem um computador em casa. A outra parte foi parcialmente solucionada nas últimas semanas. A madrinha de Micael ofereceu-lhe um telemóvel de presente, por ocasião da Páscoa. A mãe acabou por comprar outro, em segunda mão, para o irmão mais velho – “custou 20 euros”. O mais novo herdou um telefone antigo que estava em casa parado e foi reparado.

Micael não esconde o entusiasmo por ter o seu primeiro telemóvel. “É a parte fixe destas semanas”, aponta, para de pronto ser interrompido por Martim, o irmão mais novo: “Não há nada de bom nisto. É o meu último ano naquela escola, a última oportunidade de estar com os meus amigos. Eu quero brincar com eles”.