João Carlos Malta, in RR
O novo coronavírus, apesar de ser “democrático” ao não escolher raça, sexo, ou idade, na altura da infeção, tem consequências bem díspares a longo prazo no rasto de destruição que deixa na economia e nas pessoas. Nessa altura, tudo indica que serão os mais pobres a sofrer mais. Na Cova da Moura, onde muito do trabalho é informal, composto por empregadas das limpezas e trabalhadores das obras, o impacto já se sente, mas o temor maior é, sobretudo, sobre o que aí vem.
Artemiza teria sempre uma vida difícil com ou sem vírus. A Covid-19 só acelerou e intensificou os problemas. É cabo-verdiana e está em Portugal há quatro anos. Veio porque o filho Amaro nasceu com um olho fechado. O pequeno tem cinco anos e está melhor, mas não recuperado. Há três meses soube que ia ficar sem apoios do Governo, mas não quis desistir de dar os melhores cuidados médicos ao mais novo de dois filhos. Ia procurar um trabalho, mas a pandemia pôs-lhe mais um obstáculo à frente.
“Tenho esperança de que vou conseguir trabalhar para me conseguir aguentar e o menino fazer os tratamentos. Mas isto está complicado”, diz, à Renascença, Artemiza Helena Baessa, que vive na Cova da Moura juntamente com Amaro e a outra filha Filene, de 12 anos, também ela com problemas de visão.
Aos 35 anos, esta mulher vive na ânsia de arranjar um emprego que permita continuar os tratamentos de Amaro, depois de o Governo de Cabo Verde lhe ter cortado o subsídio de 849 euros mensais com que vivia.
Em janeiro, uma junta médica daquele país veio a Lisboa e disse-lhe que o estado atual do menino já não exigia estar em Portugal. Voltou a África em janeiro, mas regressou porque os médicos portugueses ainda marcaram uma consulta para a criança em maio. Ela acredita que aqui ele terá melhores cuidados de saúde e Amaro, que sofre de ptose congénita do olho direito – vulgarmente conhecida por pálpebra caída − terá melhor qualidade de vida.
Juntou dinheiro, do pouco que a família tinha, e comprou a viagem de regresso no final de fevereiro com a vontade de dar a cara e o corpo à luta. Mas onde já via uma ida muito difícil, apareceu um vírus que tudo complica e está a fechar-lhe as portas. Também o marido que está em África, e sempre ajudava com algumas despesas, ficou sem emprego e sem dinheiro.
Sempre que Artemiza fala do filho, e dos problemas com o olho, percebe-se que a voz treme e fica sincopada.
Pedidos de RSI e desemprego a subir
O caso de Artemiza é um dos muitos no bairro da Cova da Moura − um dos mais pobres do país − em que os efeitos económicos e sociais da pandemia se fazem sentir de forma mais crua entre os mais frágeis.
Naquele bairro vivem entre seis a sete mil pessoas − a população é muito flutuante − em casas muitas delas inacabadas, em condições sanitárias rudimentares. Muitas das pessoas movem-se na economia informal, as mulheres em limpezas e os homens nas obras.
"Não lhes foi informado se estavam desempregados ou não. Há muita gente que não tem contratos."
Vanda Cruz, que dirige a Associação de Solidariedade Social do Alto da Cova da Moura (ASSACM), conhece bem esta realidade, e revela que as consequências do surto de coronavírus não demoraram a aparecer.
“Há mais pedidos de RSI porque as pessoas deixam de ter rendimentos. Temos tido muitos pedidos de apoio, nesse sentido”, revela, ao mesmo tempo que avança que todos as semanas há 40 famílias que ali vão receber um cabaz de alimentos.
A preocupação está a crescer, porque os mais vulneráveis estão mais expostos. Quando as empresas começaram a fechar, houve muitas pessoas que vieram para casa. Até aí tudo normal, mas o anormal foi que “não lhes foi informado se estavam desempregados ou não. Há muita gente que não tem contratos. Acaba por ser um vínculo laboral diferente. As pessoas chegam aqui e dizem: ‘A minha patroa disse para não ir trabalhar mais, mas que não me paga os dias que eu já trabalhei’”, relata.
O mesmo cenário é descrito pelo presidente da Junta de Freguesia da Buraca, Jaime Pereira Garcia. O autarca critica a informalidade e ilegalidade de muitas situações laborais que por ali pululam e aponta o dedo aos empregadores, mas também aos que aceitam trabalhar nesses moldes. Defende que sabe bem a quem o faz receber o dinheiro por inteiro, sem descontos para as Finanças e Segurança Social.
No entanto, quando enfrentamos uma situação de crise como a que vivemos, o problema adensa-se. “Para esses é muito pior, porque nem podem recorrer à possibilidade de pelo menos ter os vencimentos reduzidos a 66%”, explica.
Neste momento, Vanda não acredita que se possa falar de "bolsas de fome" no bairro, apesar de não excluir essa possibilidade. A responsável garante que há muitas instituições que fazem um trabalho sem preço na Cova da Moura, desde o Moinho da Juventude, passando pela Santa Casa da Misericórdia, até à paróquia da Buraca que dá apoio naquele aglomerado que se estende por uma área equivalente a 16 campos de futebol.
A economia do bairro e o mítico Coqueiro
A diretora da ASSACM explica à Renascença as caraterísticas próprias daquele local e da economia local.
“O nosso bairro acaba por ser um bocadinho atípico em relação a outros de génese ilegal, porque nós não precisamos de sair para fazer as nossas compras. Vivemos uma economia bastante especial com todo o tipo de comércio e todo o tipo de equipamentos a funcionarem”, começa por explicar.
Mas isso torna as consequências da paragem imediatas: “Como não estão a funcionar, vai levar a uma quebra dos rendimentos independentemente do resto. Os cabeleireiros, por exemplo, temos aqui imensos, não podem trabalhar, até porque a polícia tem feito essa fiscalização”, recorda.
Quem conhece bem esta realidade é a dona Patriarca, que há mais de 25 anos está no comando do icónico restaurante “O Coqueiro”. Quando fala com a Renascença – já a tarde vai longa – lamenta que só vendeu três cafés.
Decidiu manter a porta aberta. Não tem de sair de casa porque mora no primeiro andar do edifício em que está o restaurante. Criou todas as condições de segurança para deixar o vírus de fora do estabelecimento. Ninguém entra e a distância de segurança tem de ser respeitada. Mas se, no início, ainda vendia alguns almoços para fora, os que ali vão buscar comida são cada vez menos.
"Se calhar daqui para a frente vai ser pior, e não se sabe quando é que isto vai acabar"
“Se há gente que não vem por causa do dinheiro? Sim. Há muita gente que gostava de vir aqui comer, mas não pode”, responde. E se o presente não é animador, o futuro não se avizinha mais luminoso. “Se calhar daqui para a frente vai ser pior, e não se sabe quando é que isto vai acabar”, antevê.
No entanto, desistir não é verbo que se possa ali conjugar. Patriarca Silva diz que não há muitas alternativas senão continuar na luta apesar dos problemas. “Se não tiver trabalho, não tenho como sobreviver, não é? Não me dão nada para estar aqui. As domésticas aqui do bairro, ninguém as quer nas casas delas e todas os dias ouço as queixas. Dizem que se demorar mais tempo não sabem o que vão fazer”, conta.
Mas nem só de desempregados, domésticas e homens a trabalhar à jorna se faz a Cova da Moura. O bairro tem hoje uma composição mais heterogénea. Maria Abreu Soares, de 44 anos, é administrativa e o marido trabalha numa empresa que monta sistemas elétricos em portas e instala alarmes.
Tem três filhos, um de 20 meses, uma de sete anos e outro de 13. Está em teletrabalho. E os problemas que tem são os que outros poderão ter em muitas casas espalhadas pelo país.
“Estão em idades muito diferentes e fases diversas. É difícil de gerir com o trabalho que tenho de fazer. Vai-se fazendo, mas não a 100%”, explica, acrescentando que ainda assim tem de arranjar estratégias para contornar a nova realidade. “Trabalho ao fim de semana ou quando o mais pequenino vai dormir”, confessa.
A telescola, uma fonte de desigualdade
As crianças são a alegria do bairro, mas nesta altura em que a escola é no quarto ou na sala de casa, são uma fonte de preocupação. A diretora da Associação de Solidariedade Social do Alto da Cova da Moura, Vanda Cruz, explica que a necessidade de dispositivos eletrónicos exclui muitos meninos do bairro.
“Isto aconteceu de um dia para o outro e não é fácil arranjar soluções. Mesmo para quem tem um ordenado, e nível económico com uma situação saudável, não é fácil ter de comprar um telemóvel e um computador”, explica.
Na Cova da Moura, “as pessoas não têm essa facilidade e há aqui muitos pais que não têm essa relação com a escola”. “[Os meninos] até têm telemóvel, mas não têm computador”, ressalva. Há ainda muitas famílias que não têm como imprimir os documentos para os estudos.
A associação tem sido uma ponte entre as escolas e os mais carenciados. As instituições de ensino mandam para ali os documentos “e nós tiramos as fotocópias”. Depois, os pais vão buscá-los à associação.
Artemiza sabe bem o que é isso. Se Amaro ainda não está na escola, Filene já lá anda. “As aulas são complicadas, ainda mais agora que ela não tem computador, nem impressora. Exige um bocadinho”, lamenta.
Infetados? Que se saiba poucos ou nenhum
Num bairro em que a precaridade é grande, a salubridade das habitações não é muita, a verdade é que de todos com que a Renascença falou, a resposta foi unânime: não há conhecimento de casos de infetados. Apenas o autarca da Buraca falou de um homem de São Tomé e Príncipe que foi hospitalizado e, entretanto, já está em casa.
Não é paradoxal? A arquiteta e ex-deputada Helena Roseta que, de 2015 a 2019, foi coordenadora do Grupo de Trabalho para a Habitação na Assembleia da República, explica o fenómeno com um conjunto de hipóteses.
“Não há, porque se calhar, e em primeiro lugar, não estão testados. E porque por definição aquelas pessoas estão isoladas. Os que trabalhavam deixaram de trabalhar e não saem dali. E também ninguém lá vai. Comem do que têm, plantam umas couves, têm umas galinhas. É o outro lado da pobreza”, avança.
"As aulas são complicadas, ainda mais agora em que ela não tem computador, nem impressora "
As várias pessoas com quem a Renascença conversou relatam que no início do surto do novo coronavírus foi complicado manter as pessoas em casa. A administrativa Maria Soares fala da cultura africana, que tem dificuldade em habituar-se ao confinamento, por a vida ser normalmente toda feita na rua. A falta de conforto das casas não será um fator despiciendo para o entender.
“Culturalmente as pessoas estão habituadas a estar na rua, a brincar na rua e esta situação, inicialmente, não foi levada muito a sério. Víamos pessoas a brincar, sair e passear”, conta.
Vanda Cruz concorda que é “um bocadinho complicado para as pessoas alterar esses hábitos”. Ainda assim, “vê-se já uma alteração significativa”. “Via-se muita gente a vender comida na rua e agora já não se vê. Via-se muita gente às portas dos cafés, quatro ou cinco amigos, agora já não. As pessoas têm a consciência de que têm de mudar os seus hábitos apesar ainda se continuar a ver alguns na rua”, resume.
A ajuda chega? Depende da longevidade do surto
O presidente da Junta da Buraca, Jaime Pereira Garcia, recusa-se a falar da Cova da Moura isoladamente quando olha para os problemas que o Covid-19 trouxe. Fala da totalidade da freguesia e identifica a população idosa como a mais vulnerável. O político diz que tem tentado chegar a todo o lado e a todos os pedidos.
Para já tem sido possível, mas se a paragem do país se prolongar por muito mais tempo, não sabe até quando será exequível acorrer a todos ao mesmo tempo.
Aos idosos, juntaram-se os que estão em "lay-off" – para quem, em muitos casos, os 66% de salário não chegam para fazer face a empréstimos e a despesas correntes. Começam a ter de recorrer à ajuda das instituições locais para comer. A estes somam-se os que ficam desempregados, que têm aparecido em maior número.
“Nós não temos a possibilidade financeira para chegar a todos”, assume Pereira Garcia, queixando-se da falta de paridade de disponibilidade financeira quando se compara com as juntas de Lisboa que têm a mesma densidade populacional, mas recursos muito superiores para poder responder às necessidades dos fregueses.
O autarca compromete-se ainda a manter todos os empregos, sejam eles a contrato ou a recibo verde, que dependam da Junta. Estes últimos, defende, também são importantes, porque se os mandássemos para casa eram “outros que tinham dificuldade em conseguir sustentar as suas despesas”.
Apesar das nuvens do presente, Jaime Garcia Pereira quer ver um pouco de sol no futuro. Mantém a fé. “Estamos na esperança de que as coisas melhorem no próximo mês, o país não pode manter as portas fechadas durante muito tempo”, afirma.
Porque caso contrário “deixa de haver uma pandemia e passa a haver outra”.