Natália Faria, in Público on-line
Manuel Loff, historiador e professor na Universidade do Porto, aponta o medo, o pessimismo e a tristeza dos portugueses, a par da sua pobreza relativa, como factores explicativos para a disciplina no cumprimento do isolamento social. É preciso explicar-lhes que “é possível viver e trabalhar no espaço público sem estar em risco”, alerta.
uma sociedade pouco feliz, o medo avança”, diz o historiador Manuel Loff, historiador e professor na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigador no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, explicando assim a pronta resposta dos portugueses ao “toque para recolher”. Demarcando-se do discurso “hegemónico” e “totalmente avassalador” quanto à eficácia do isolamento social, considera que, por causa do mesmo medo, os portugueses serão dos que mais resistirão ao regresso à vida normal. E porque nenhuma economia sobreviverá a ano e meio de paralisação, defende que é urgente explicar aos portugueses que “o espaço público não é uma bomba por explodir” e que “é possível viver e trabalhar no espaço público sem estar em risco”.
Os portugueses mais do que os franceses, os espanhóis e os italianos, acataram a ordem de confinamento doméstico. A prontidão na resposta ao toque para recolher é resquício da ditadura ou a questão não é tão simples nem tão linear como isso?
Começo por alguns outros dados que ajudam a explicar os resultados portugueses e que também se repetem nos países da Europa Centro-Oriental (Roménia, Bulgária, Hungria, Polónia…) que têm uma mortalidade e uma taxa de infecção igualmente baixas que decorrem da natureza também periférica das economias. É verdade que o carácter periférico de Portugal ajuda a isto. Países com conexões internacionais regulares e com comunidades de migrantes maiores do que as que vivem em Portugal foram mais afectados. Nos mais graves casos europeus, onde é que tudo isto se concentrou? Onde há mais indústria exportadora, mais comércio internacional, como o Norte de Itália, Catalunha ou Madrid. São ao mesmo tempo zonas cuja composição social e étnica faz com que haja mais conexões internacionais. Isto também se aplica ao caso português, onde os maiores focos de contágio estão concentrados nas regiões com mais indústria exportadora, como a área metropolitana do Porto. Portanto, sou crítico da ideia que se está a generalizar de que este menor impacto da pandemia em Portugal se deva só às medidas adoptadas. Há, em Portugal, um tal consenso maioritário, hegemónico, totalmente avassalador, sobre o modelo escolhido da supressão que ninguém vai querer dizer que ele não funcionou. Nós ainda não chegámos ao fim do processo – estamos longe disso – e já estamos a dizer que ele funcionou. Por outro lado, nós não somos a população mais envelhecida – a Itália ou a Espanha têm-na mais – mas é verdade que, em todo o interior português, de Norte a Sul, a nossa composição demográfica é exactamente a de qualquer país do que antigamente se chamava terceiro mundo, de qualquer país pobre onde há muita emigração: regiões inteiras ficaram despovoadas de jovens e de gente em idade activa e sobrecarregadas proporcionalmente de velhos. E, sendo um grupo de risco, os velhos têm poucos contactos sociais, saem pouco. Explicamos desta forma por que razão é que uma grande parte do interior, salvo focos isolados e muito ligados aos fenómenos desoladores dos lares de idosos, está relativamente poupado a isto.
Aquelas que são as nossas debilidades em termos de coesão territorial e social ajudam a combater o vírus?
É verdade. O facto de o interior ter — proporcionalmente até — poucos casos resulta em grande medida desse país, não só desigual, mas profundamente pobre. O interior do país — Trás-os-Montes, Beiras, uma grande parte do Ribatejo, Alentejo – retrata uma sociedade pobre que tem pouco paralelo na maioria do conjunto dos territórios da União Europeia. Isso ajuda. Em Portugal, onde é que concentraram as possibilidades de contágio? Nas regiões urbanas, onde há muito mais interconexões, muito mais jovens que estudam fora de casa, muito mais migrantes, muito mais comércio internacional. E aí funcionou este zelo, esta enorme vontade de contenção, que, contudo, nos fará pagar um preço económico muito grande. Eu creio, em primeiro lugar, que esta contenção é muito superior ao que aconteceu em Itália e Espanha e em boa parte dos países do Norte da Europa, onde se vêem medidas muito semelhantes mas não tão radicais quanto as nossas — com a grande excepção do caso sueco que não tem medidas de contenção senão para os grupos de risco e onde todas as escolas, do pré-primário até aos 16 anos, estão a funcionar. No caso português, não arrisco dizer que a adesão ao isolamento social seja um resquício da ditadura. Nós somos à escala europeia, dizem-nos todos os estudos da OCDE, uma das sociedades mais deprimidas, mais infelizes e mais tristes da Europa. Somos a sociedade mais desigual da Europa Ocidental, das que consomem mais antidepressivos, e das que têm uma perspectiva mais pessimista e se sentem menos felizes. E, numa sociedade pouco feliz, o medo avança. As pessoas cumprem aquilo que lhes pedem. Além do mais, alguns dos nossos concidadãos – e, isso sim, é uma prática que era típica da ditadura – transformaram-se em “delatores”. Uma sociedade cuja polícia diz que diariamente recebe centenas de chamadas de gente a denunciar pessoas que se passeiam na rua é também uma sociedade em que uma parte das pessoas virou delatora.
Para Manuel Loff, os portugueses deixaram-se bloquear pelo medo e será difícil convencê-los a retomar a vida exterior PAULO PIMENTA
Portanto, esta pronta adesão dos portugueses ao isolamento social não é um indicador de algum tipo de avanço civilizacional mas consequência da depressão, do medo.
É medo, é infelicidade, é pessimismo face ao futuro, que agora se vai agravar.
O nosso aparente sucesso no travão à propagação do vírus decorre do nosso subdesenvolvimento?
Não lhe chamaria subdesenvolvimento, mas da nossa pobreza relativa, do carácter periférico da nossa sociedade e – insisto nisto – do menor contentamento com a vida que os portugueses manifestam comparativamente a outras sociedades, e que decorre da polarização, da maior pobreza e do envelhecimento do interior sentido em grande medida como abandono.
Na ressaca da pandemia, que factura iremos pagar em termos sociais?
O tom mudou, já ouvimos Marcelo adoptar um discurso optimista e a dizer que o pico já passou, o que, contudo, como já vimos na questão das escolas, não vai permitir o regresso à normalidade. E a questão das escolas é central desde quando percebemos que a sociedade, e particularmente os pais de crianças em idade escolar, os professores e os directores das escolas, estavam claramente à frente do Estado e das autoridades sanitárias ao exigirem medidas que nem as autoridades sanitárias nem a própria Organização Mundial de Saúde OMS) propunham que fossem adoptadas. As autoridades sanitárias disseram que haveria uma fase de contenção e depois de mitigação e nós saltámos imediatamente para medidas que a OMS propunha para a segunda fase.
“É possível amarmo-nos, conhecermo-nos, colaborarmos e odiarmo-nos por via virtual”
O Governo começou por encerrar as escolas num contexto de pressão social para que o fizesse mesmo contra a recomendação do Conselho Nacional de Saúde Pública.
As pessoas têm medo – é natural que o tenham – mas julgo que esse medo fará com que recusem regressar ao espaço público e ao trabalho presencial, enquanto não lhes garantirem a 100 por cento – a 100 por cento! – que não há risco de contágio. Ora, contágio sem risco, só teremos quando houver a vacina. O primeiro-ministro, António Costa, portou-se muito bem ao lembrar que o ensino virtual não substitui o ensino presencial. É importante que ele o tenha feito porque os professores, com medo, querem continuar no virtual. E não só os que têm asma ou já fizeram tratamentos oncológicos: são todos. Esta é a maior batata quente que o Governo vai ter nos próximos meses, também porque somos dos países que, na Europa, tem dos sistemas mais difíceis de acesso à universidade. Portanto, alguém terá que vir explicar de novo que o espaço público não é uma bomba por explodir, não é um perigo permanente, e que é possível viver e trabalhar no espaço público sem estar em risco. Isto significa dar máscaras, garantir distanciamento, segmentar a população, mas é possível. E já se sente em vários países europeus essa preocupação em planear um regresso à normalidade. E essa planificação passa por duas coisas, uma das quais não vamos fazer tão cedo, e que é a testagem, quer ao vírus, quer sobretudo à imunidade para um grande número de pessoas. E depois, sim, fazermos uma segmentação da população.
Uma sociedade cuja polícia diz que diariamente recebe centenas de chamadas de gente a denunciar pessoas que se passeiam na rua é também uma sociedade em que uma parte das pessoas virou delatora
A directora-geral de saúde Graça Freitas tem dito que as autoridades de saúde estão a avaliar de que modo e em que altura poderemos avançar para esses testes serológicos.
Sim, e esses testes permitirão segmentar a população e dizer, fora dos grupos de risco, quem é que deveria voltar ao trabalho. Tenho acompanhado diariamente os media espanhóis, italiano, franceses e britânicos e, por comparação, parece-me, embora isto seja empírico, que nós seremos dos países onde mais está presente este consenso sobre não regressarmos à normalidade enquanto não houver segurança e garantias absolutas. E, para mim, este consenso maioritário entre os portugueses vai dificultar e até bloquear qualquer forma de regresso segmentado ou faseado à normalidade.
Os portugueses foram os que mais prontamente aderiram ao isolamento social e serão os que mais resistirão ao desconfinamento?
O medo é natural mas bloqueia as pessoas e vai-nos bloquear colectivamente muito tempo. O melhor indicador disto é a reacção de pais, professores e directores de escolas à ideia que o Governo lançou de que eventualmente em Maio poderíamos ter um regresso às aulas presenciais no secundário. E o problema é que a curva [epidemiológica] é tão achatada que isto se vai prolongar imenso tempo. Não há nenhuma nova epidemia, nenhum novo agente patogénico contagioso, que não se generalize em algum momento. Logo, o que temos é que ganhar imunidade. É evidente que deve haver medidas que contenham a propagação, mas devíamos temos que fazer isto com o mínimo de racionalidade, porque, se não fizermos nada enquanto não houver vacina, qual é a sociedade que aguenta 18 meses parada?