Céu Neves, in DN
As feiras estão fechadas devido à covid-19, também muitos estabelecimentos que costumam doar as sobras. Metade da comunidade cigana está a passar fome, alertam os dirigentes associativos.
A estrada que liga Leiria à Marinha Grande, há um acampamento cigano no meio do pinhal e que passa completamente despercebido a quem conduz. Sem água ou luz, umas dez famílias, mais de 40 pessoas, vivem em barracas sem o mínimo de condições há mais de 30 anos. Não trabalham, poucas crianças vão à escola, vivem do Rendimento Social de Inserção (RSI), também da mendicidade. Parecem parados no tempo, mas a situação deteriorou-se ainda mais com a pandemia por covid-19.
Vilma Freitas, 39 anos, formada em História e agente comercial (promotora de livros) é quem, agora, lhes leva alimentação, alguns medicamentos e bens comprados com o dinheiro angariado pelas associações da comunidade cigana, num processo liderado pela A Letras Nómadas.
"Está tudo a passar fome, de norte a sul do país, as associações é que estão a apoiar com alimentos e medicamentos. Se formos 50 mil ciganos a viver em Portugal, diria que 25 mil estão a passar fome. A maioria vive da feira ambulante. Com as feiras fechadas, as pessoas não têm onde ganhar dinheiro. E ninguém sabe quando vão abrir. Tenho ouvido falar da abertura do comércio local a partir de maio mas não ouço nada sobre as feiras, que são o sustento de muitos. Ciganos e não ciganos", protesta Olga Mariano, presidente da associação.
Manter a saúde face a uma pandemia, também é preocupante, uma vez que há quem viva em condições habitacionais degradantes, deixando-os mais desprotegidos, denuncia a dirigente. E, quem está doente, não tem acesso às visitas familiares, como é habitual na comunidade cigana. Olga Mariano diz que já morreram dois ciganos com a Covid-19 e que há também alguns que estão internados, incluindo nas unidades de cuidados intensivos.
Como é que, em tais condições, as crianças vão estudar e aprender à distância? Olga Mariano teme que haja um retrocesso porque muitas famílias não têm computador e nem sequer vivem em casas com um quarto onde se possa estudar: Retribui com outra pergunta: "Como, se até a comida falta?"
Encobertos no pinhal
No bairro do Pinhal, da Marinha Grande, o maior problema não é o do encerramento das feiras, mas sim o da extrema pobreza que se arrasta há anos. Fazem parte do terço das famílias ciganas que vivem em barracas, tendas, etc., num universo de 37 mil residentes de etnia cigana no país, segundo o documento Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas 2013-2022. Mas Bruno Gonçalves, vice-presidente de A Letras Nómadas, estima que sejam mais do dobro dos 37 mil oficiais. Garante que esta situação é das mais graves que vivem na comunidade.
"O problema daquela comunidade, e da falta de ajuda, é não estarem à vista de todos. A situação está pior agora, costumam pedir nos supermercados - alguns dão sobras ao final do dia - e muitos estão fechados", explica Vilma Freitas. Quase se irrita com a pergunta: porque é que não trabalham? "Acha mesmo que alguém lhes dá trabalho? "
Justifica: "A sociedade não está preparada para isso e, é verdade, que eles também não. Não conhecem outra realidade, nunca lhes apresentaram outra alternativa, têm de ter formação e aprenderem a ter responsabilidades. Há dez anos que vou regularmente ao acampamento, tenho batido a todas as portas, à câmara da Marinha Grande, para que se constitua uma equipa disciplinar e fazer qualquer coisa, ainda não o consegui".
Começou a frequentar o "bairro" quando fazia parte de uma associação de apoio aos animais e houve um surto de sarna no acampamento. Posteriormente, deixou a associação mas não a comunidade, onde vai todas as semanas para levar comida aos animais e explicar os cuidados que devem ter - só há pouco tempo, conseguiu que percebessem a importância dos animais serem esterilizados. Também ajuda as famílias ciganas com o que pode, entregando muitos artigos doados por amigos. Em algumas situações mais delicadas acompanha-os ao centro de saúde ou ao hospital.
Vilma exemplifica com as medidas de isolamento social e, agora, com o ensino à distância e a telescola, como essas mensagens não passaram para o acampamento. "Ensino? Esqueça. Não têm computadores, não há ali telescola, nem sequer foram devidamente informados do que está a acontecer, apenas sabem que a escola está fechada. Foi lá uma técnica avisar um agregado, disse-lhes para não andarem por aí, mas não houve uma comunicação a todas as famílias. São pessoas desinformadas e que precisam não só de informação como de produtos de proteção e de higiene".
Frequentam a escola umas seis crianças, que vão quando querem e passam na mesma, critica Vilma Freitas. "Não são obrigados a ir à escola, como é obrigada a minha filha que tem oitos anos. E passam de ano quer saibam ou não. Parece ser uma discriminação positiva, mas não é, é uma discriminação negativa. Não se interessam por eles." Os que estão inscritos na escola vão levantar as refeições aos estabelecimentos de ensino e há famílias em que uns almoçam e outras não, sublinha.
Bruno Gonçalves destaca que mais de 50 % da comunidade não tem acesso à internet e ao computador para as crianças ciganas aprenderem em casa. Também não têm condições físicas, uma vez que muitas famílias estão confinadas a uma divisão. Mas, para já, a questão prioritária é o fornecimento de alimentação e de medicação, diz.
"As associações, e os amigos da causa, há um mês que se organizaram para angariar apoios para quem está a passar mal com esta situação. Damos vales a algumas famílias ou pedimos às associações locais para lhes comprarem alimentação e medicação, é verdade que há instituições a apoiar mas os alimentos demoram mais tempo a chegar, tem que ser feita uma triagem. No nosso caso, são os facilitadores e os animadores locais que filtram as situações, conhecem melhor estas famílias. Só apoiamos quem precisa, aliás, quem não necessita está a ajudar", explica o vice-presidente de A Letras Nómadas.
Confessa: "Emocionalmente, não estamos a lidar bem com a situação, nunca imaginámos que chegássemos a esta situação, estamos a pagar uma fatura muito cara. Há uma grande iliteracia e importa que as pessoas acedam aos apoios e não o conseguem porque não sabem como o fazer, nós próprios temos dificuldade em os contactar através da Internet".
A própria comunidade fez campanhas de sensibilização sobre a covid-19, com as regras de proteção, de higiene e de isolamento social, explicando o que se está a passar em Portugal.
Pediram na última semana uma reunião à secretária de Estado para a Integração e Migrações, Cláudia Pereira. A quem têm propostas a apresentar: apoio alimentar, também a entrega de máscaras e luvas a quem não tem meios financeiros; isenção de renda dos espaços de venda ambulante no 1.º e 2. º meses do reinício da atividade; um acompanhamento escolar mais próximo das crianças para que tenham acesso às aulas.
Sabem que o Governo poderá apoiar - pediram listas dos agregados com dificuldades -, mas Bruno Gonçalves refere que ainda não chegou ao terreno essa ajuda. As associações têm a colaboração do Banco Alimentar, nomeadamente para as famílias do bairro do Pinhal.
Cláudia Pereira disse ao DN que está a intervir junto da comunidade cigana a vários níveis. Assegura que estão "mapeadas as principais carências destas populações pelo país, quer ao nível alimentar, quer de condições de habitação e as estruturas da sociedade civil que, em cada concelho, asseguram a implementação do Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas". E que o Alto Comissariado para as Migrações , logo no início do período de confinamento, reforçou o seu papel de acompanhamento de proximidade (via telefónica/email).
Acrescenta que, em relação aos estudantes, estes estão a ser contactados pelos técnicos dos projetos Escolhas "para acederem a atividades pedagógicas, bem como à alimentação proporcionada pelas escolas", em articulação com o Ministério da Educação.
Bairro em Moura
A comunidade cigana foi sobretudo notícia há uma semana, quando se detetou num bairro social em Moura, o Espadanal, uma série de pessoas infetadas com o SARS-Cov-2. Vírus que um residente apanhou no hospital, onde vai para fazer hemodiálise. Propagou-se pelo bairro acabando por ali infetar 32 pessoas, 17 crianças e 15 adultos, que há uma semana não podem sair daquele espaço.
É a Câmara Municipal de Moura que tem feito chegar os bens ao bairro. "Está tudo normal, as famílias estão a cumprir a quarentena, estão muito satisfeitas", garante Álvaro Azevedo, presidente da Câmara Municipal de Moura.
Mas às associações representativas da comunidade têm chegado queixas, nomeadamente que todos os residentes do bairro do Espadanal pagam as compras que a autarquia entrega, ao contrário do que foi inicialmente anunciado.
"Nunca dissemos que os alimentos não eram pagos, quem não perdeu rendimentos têm que pagar as coisas, como acontece com qualquer pessoa neste planeta, o que a câmara faz são as compras. Já em relação às pessoas que perderam rendimentos, a câmara tem que comparticipar", justifica o autarca.
Bruno Gonçalves, o vice-presidente de A Letras Nómadas e delegado nacional do programa do conselho da Europa Romed, contesta a forma como a população do bairro ficou enclausurada. "Vivem no bairro 59 pessoas e que já apoiamos por três vezes, não todas porque algumas pessoas disseram que não necessitavam. Agora, além do presidente da câmara ter despedido os mediadores, não deixou que um deles entregasse alimentos no bairro. Não se faz politiquice com a vida dos infetados", acusa.
Álvaro Azedo argumenta que o mediador em causa, Benjamim Barão, foi impedido de entregar os bens porque há regras. "As pessoas estão em quarentena e qualquer coisa que chega ao bairro desestabiliza. O que temos vindo a proporcionar é estabilidade, paz. Se alguém quiser entregar alimentos tem de os levar às entidades competentes, que depois fará a distribuição".
Quanto ao fato de ter despedido três dos quatro animadores do concelho de Moura, contrapõe que falharam quando eram mais precisos. "Não só não cumpriram as tarefas no bairro, como desligaram os telemóveis. Agora são os funcionários da câmara que levam os sacos aos moradores", argumenta.
Não é aquela a versão dos dirigentes associativos. "Estavam a apoiar na medida do possível, nunca se negaram a trabalhar com a comunidade, que pediu para ficarem. Agora, não são agentes sanitários, nem sequer tinham equipamento de proteção individual. Foram despedidos numa reunião de 32 minutos em que o presidente da câmara não deixou falar ninguém", diz Bruno Gonçalves. Acrescenta que a situação foi denunciada aos responsáveis do Governo e ao Alto Comissariado para as Migrações (ACM)..
O gabinete da Secretária de Estado Cláudia Pereira informa, "que de acordo com a informação ao ACM, não houve formalização de despedimento de mediadores interculturais em Moura". Acrescenta que o ACM continua a acompanhar a situação de saúde e social do concelho, em particular da população cigana, no seguimento de confirmação de casos infetados no Bairro do Espadanal e em articulação com o município e outros serviços locais".
Sublinha "o papel essencial dos mediadores interculturais, em particular dos mediadores portugueses ciganos que facilitam a comunicação e a interação positiva entre profissionais e populações nesta fase crítica de mitigação dos efeitos da pandemia".