22.4.20

Insegurança alimentar e pobreza podem disparar com o avanço da covid-19

Cristina Peres, in Expresso

Países desenvolvidos e subdesenvolvidos correm o risco de ver comprometido pela pandemia o fornecimento de alimentos essenciais. Os stocks são adequados por agora, mas começa a haver engarrafamentos na distribuição, enquanto a sombra do protecionismo paira sobre limites impostos às exportações. Más notícias para quem já vive no limiar da má-nutrição

“Só é preciso um azar a meio do percurso e tudo muda radicalmente.” Esta é a convicção de Abdolreza Abbassian, economista sénior da FAO — Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura —, que partilhou com o Expresso, a partir da sede da organização em Roma, argumentos sobre a vulnerabilidade das cadeias globais de produção e fornecimento de alimentos em tempo de pandemia.

A possibilidade de contágio por coronavírus ainda está para durar e a quantidade de países que optou pelo encerramento das suas fronteiras é inédita. Por agora há alimentos que cheguem para todos. “Os stocks são adequados às necessidades”, garante Abbassian, os preços mantêm-se baixos devido ao abrandamento económico, mas os desequilíbrios não precisam de ser de grande monta para darem origem a pânico.

Se assim não fosse, termos como “açambarcamento de bens”, “disrupção das cadeias” ou “proibição de exportação” não estariam a ser tão repetidos na comunicação social. A sombra do protecionismo ameaça tornar-se uma deriva nacionalista, podendo levar os tradicionais grandes exportadores de matérias-primas alimentares a darem prioridade aos mercados internos em detrimento das cadeias de exportação nas quais representam parte de leão.

A desconfiança é um fator de volatilidade e, num ambiente tenso como aquele que por estes dias soma ingredientes em todas as geografias, o caráter essencial da alimentação fica mais evidente.

No Cazaquistão já se fecha a torneira à exportação de farinha e de trigo, no Vietname e na Índia aferrolham-se as reservas de arroz, no Camboja limita-se a venda de peixe e de arroz, e o mundo aguarda as decisões de gigantes da exportação de cereais como a Rússia e a Ucrânia. Desde meio de março que pelo menos dez países introduziram restrições às vendas para outros continentes de produtos como cereais e arroz, atesta o barómetro do International Food Policy Research Institute (IFPRI), com sede em Washington.

A autossuficiência e a segurança alimentar estão na ordem do dia. O aumento das limitações às exportações de bens alimentares tem sido contínuo, em particular de alimentos básicos como o trigo e o arroz, em risco de passarem a ser mais inacessíveis e mais caros. Exportar de acordo com as reservas existentes ou por antecipação do susto de vir a vê-las reduzidas depende de decisões políticas.

O comércio internacional é fundamental para a prosperidade, saúde e sustentabilidade ambiental. Perante esta realidade e a premência de garantir os fornecimentos essenciais, muitos países tratam de diversificar as suas fontes e equacionam aproximá-las da sua geografia nacional. Isto é o mesmo que reconhecer que a pandemia já foi além de comprometer as cadeias de fornecimento. Já desenterrou a sombra do protecionismo.

ENGARRAFAMENTOS COMPROMETEM A DISTRIBUIÇÃO
Os peritos mundiais em alimentação insistem que as quantidades nos stocks globais de cereais e alimentos básicos são suficientes, o que está a criar turbulência e a deixar algumas prateleiras vazias nos grandes retalhistas de alguns países desenvolvidos são os engarrafamentos da distribuição provocados pelo encerramento generalizado das fronteiras.

Especialistas em emergência de riscos, como Tim Benton, diretor de investigação desse departamento no think tank londrino Chatham House, afirmam: “Ser rico já não é garantia de se conseguir o que se quer em mercados difíceis”.

Joseph Glauber, investigador associado do IFPRI, declarou a este propósito à Bloomberg: “A alimentação é um tópico bastante emocional quando não existe em quantidade suficiente”.

No caso dos países em desenvolvimento, o drama está anunciado: “Se não se fizer nada em relação aos países pobres, que não conseguem defender-se sozinhos do impacto da restrição ao movimento nas suas economias, a situação é capaz de fugir ao controlo”, diz ao Expresso Abdolreza Abbassian.

Na grande fatia do Sul, seja em África ou na América Latina, impedir o movimento a milhões de trabalhadores sazonais é comprometer-lhes a sobrevivência e a das suas famílias. Se a subnutrição já é certa, “duas ou três semanas de paralisia vão certamente levar os casos extremos ao limite”, lembra o economista da FAO.

Quem tem maior capacidade de reação age rapidamente. Singapura acaba de anunciar que vai criar um grupo de trabalho para aumentar a produção local de alimentos no horizonte de 2030.

Na indústria alimentar mundial há já figuras de proa que apelam aos países para que mantenham abertos os fluxos de comércio de modo a evitar que a fome mundial aumente de forma sensível. Ao mesmo tempo, as Nações Unidas apelam a que os Estados trabalhem juntos para evitar “políticas de pedir ao vizinho”.