Mariana Correia Pinto, in Público on-line
Lar em Matosinhos regista pelo menos três óbitos, mas há quem tema uma desgraça maior. Mais de 60 funcionários estarão em casa infectadas ou à espera do resultado de teste à covid-19. Há quem não consiga contactar familiares há várias semanas. Lar diz ter falta de recursos, mas recusa negligência.
A dificuldade de comunicação nem sequer é novidade, mas em tempos de pandemia, onde as visitas presenciais estão proibidas, o problema ganha novos contornos. Desde o dia 5 de Abril que a familiar de um utente do Lar do Comércio, em Matosinhos, tenta contactar a instituição de forma persistente - e sem sucesso. A telefonista não atende. Quando a chamada é passada para a enfermaria através do segurança, o telefone soa indefinidamente também sem resposta. Depois de queixas infrutíferas numa esquadra da PSP e de ser aconselhada a tentar um contacto no local, M. esperou uma hora para falar com uma enfermeira. O familiar estava doente, “com muita tosse e sintomas de covid-19”, ter-lhe-á dito. Aguardavam o resultado do teste. No dia seguinte, comunicaram-lhe um resultado negativo, mas cinco minutos depois corrigiam: afinal estava positivo.
Vistas do céu, as estufas de LED dos Países Baixos parecem obras de arte
M. – assim identificada por temer represálias em relação ao seu familiar - está inquieta. E não é a única. A instituição com 240 residentes tem sido confrontada por dezenas de familiares que, como ela, não sabem o que se passa para lá da fachada do lar. Queixam-se de uma barreira na comunicação e relatam casos de negligência. Trabalhadores afirmam que plano de contingência nunca foi cumprido e reclamam ter trabalhado semanas sem protecção. “É uma desgraça anunciada”, lamenta P., emocionada, em conversa com o PÚBLICO: “Se ninguém puser a mão no Lar do Comércio vai haver muitas mortes”.
Esta terça-feira, num comunicado em resposta a uma reportagem do Porto Canal, o Lar do Comércio, dirigido por José Moura, lamenta o burburinho e aquilo que diz serem “notícias difamatórias e falsas”. Às perguntas do PÚBLICO, o lar acabou por não dar resposta. A instituição diz estar a trabalhar com “recursos humanos escassos” (embora afirme estar a tentar contratar) e lamenta as “mais de 60 baixas de colaboradores”. A razão dessas ausências não é explicada, mas P. faz questão de denunciar: “As funcionárias não fugiram nem estão com baixas. Estão infectadas ou à espera de resultados de testes”.
Os equipamentos de protecção individual, continua o lar num comunicado não assinado, “não existem em quantidades elevadas” e obrigam a uma “gestão eficaz” dos mesmos. E por que razão os utentes estão sem contacto com os familiares? “Receber pedidos de informações diários e constantes por parte dos familiares torna-se, na maioria dos momentos, incompatível com a nossa árdua tarefa de cuidar de tantas pessoas, tão dependentes, ao mesmo tempo que tantas outras exigências nos são impostas, a cada minuto”, justifica.
Testes estão a ser feitos
A Câmara de Matosinhos visitou o lar no dia 7 de Abril, tendo enviado o relatório dessa visita à instituição passado quatro dias, um documento onde constam “todas as recomendações urgentes da equipa técnica”. Nessa altura, acrescenta a autarquia num comunicado enviado ao PÚBLICO, não havia nenhum utente com resultado positivo à covid-19 nem nenhum com sintomas. A primeira confirmação de infecção chegaria, segundo o lar, logo no dia seguinte, a 12 de Abril. “Até à data registamos apenas três mortes por suspeita de covid-19”, acrescenta o Lar do Comércio.
O executivo de Luísa Salgueiro entregou no Lar do Comércio “500 máscaras cirúrgicas, 100 máscaras FFP2, 40 viseiras e cinco litros de álcool gel”, disponibilizando ainda “serviços de limpeza para as suas viaturas e líquidos desinfectantes para superfícies interiores e exteriores e líquidos para higiene pessoal”. Uma unidade de rastreio móvel está também a fazer testes em lares de idosos e também de apoio a pessoas com deficiência: no Lar do Comércio, informa a autarquia, foram testados 180 utentes e 40 funcionários, continuando esse rastreio na quarta-feira. Os resultados não são, para já, divulgados.
P. soube do material doado pela autarquia, mas garante que ele foi “escondido”. Até à visita da delegação de Saúde, antes do primeiro caso confirmado, os trabalhadores andavam sem qualquer protecção ou usavam máscaras compradas por eles mesmos. Os utentes continuam sem essa protecção. “O próprio delegado de saúde quando foi lá disse ‘isto está tudo mal. É uma bomba relógio’”, conta. Neste momento, garante, há doentes infectados nas enfermarias e doentes infectados nos quartos. Há gente com suspeita misturada com gente saudável. Ninguém sabe bem quantos casos haverá. Nas poucas vezes em que tem de falar com familiares dos utentes, no entanto, P. é obrigada a dizer que tudo está bem. “Somos ameaçadas com processos se não o fizermos”, conta. “Estamos cansadas, mas precisamos de trabalhar. Estamos de mãos atadas. Por isso gritamos por ajuda anonimamente.”
“Nem sei se a minha mãe já morreu”
A. – novamente sem identificação por medo de represálias – está aflita com dois familiares que ali vivem. Depois de vários dias sem conseguir ter informações, a mãe de A. ameaçou chamar a televisão e acabou por conseguir falar ao telefone com um funcionário. Uma dessas pessoas da sua família ia fazer o teste no dia seguinte e a outra estava com covid-19. Esta última, ainda bastante autónoma, acabou por conseguir fazer uma chamada para a família: estava assustada, dizia-se “tratada como um cão”, tinha sido isolada num quarto mas continuava a usar a casa de banho comum. Na enfermaria, a outra familiar estará “com mais 66 pessoas, acompanhadas por apenas quatro trabalhadores”, acabou por lhes confessar uma funcionária há dias. “Consideramos isto uma negligência, um crime. E vamos acusá-los disso”, afirma A.
Manuela Costa e Almeida não se importa de dar o nome. “Estou nesta luta há quatro anos”, comenta, falando de situações “graves” anteriores a este problema. “Uma alimentação terrível, higiene muita má, idosos por vezes insultados. Há três anos vim almoçar com a minha mãe a um domingo e fui insultada só por tentar saber o que estavam a servir.” Já pediu audiências com o presidente da instituição, mas soluções não existem. “Apenas fiquei carimbada”, afirma. “Tenho um dossier cheio de queixas. Comuniquei com a câmara, a Segurança Social, a polícia, fui ouvida pelo DIAP.”
A mãe, de 92 anos, está isolada num quarto e comunica com ela por telemóvel. Ainda não fez o teste ao SARS-CoV-2. À porta do lar, relata ao PÚBLICO, esta terça-feira foi de rebuliço constante. Polícia, familiares, carrinha de testes. “Há pouco uma senhora dizia-me que queria tirar a mãe daqui”, conta. “Dizem-nos que já há cinco mortos e montes de contaminados. Uma senhora disse-me ‘nem sei se a minha mãe já morreu’. Isto é inadmissível.”
O comunicado publicado pelo Lar do Comércio na sua página do Facebook esta terça-feira rapidamente se transformou num espaço de debate e denúncia, de aplausos aos funcionários que resistem e dedos apontados à direcção por não dar a cara. M. exige, numa carta enviada ao director do lar, saber qual o estado de saúde do seu familiar e solicita novamente um serviço de comunicação eficaz, uma vez que o telemóvel que o familiar tinha lhe terá sido confiscado. Já apresentou queixa contra a instituição – mas continua sem resposta.
Em 2019, uma queixa da Ordem dos Enfermeiros, relatando as condições precárias do lar, levaram a Segurança Social a visitar o espaço. O relatório confirmava problemas e as queixas acabaram no Ministério Público. O Instituto de Segurança Social investigava o lar, no final do ano transacto, por suspeitas de “pagamento como critério de admissão de utentes” e de “vantagem patrimonial indevida”, noticiou, na altura, o Jornal de Notícias. No departamento de investigação e acção penal há também inquéritos a decorrer – mas em segredo de justiça.