Daniel Oliveira, in Expresso
Os efeitos devastadores da solidão para a saúde são um dado científico incontestável. Cabe aos idosos que estejam em condições de o fazer decidir até que ponto querem ir. E cabe-nos pensar em alternativas para os que queiram algo diferente
Durante o Blitz, centenas de milhares de crianças de várias cidades britânicas foram enviadas para o interior, para que fossem poupadas aos bombardeamentos, ficando separadas dos seus pais. Estudos posteriores revelaram que as crianças que ficaram, apesar de estarem sujeitas ao medo dos bombardeamentos, apresentavam menos traumas psicológicos do que as que tinham sido poupadas a esta provação.
Esta história foi-me recordada pelo bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses, Francisco Miranda Rodrigues, numa entrevista que lhe fiz recentemente e que brevemente irá para o ar. Para me recordar que o vínculo aos pais dá mais segurança a uma criança do que a distância do perigo.
Terão morrido mais crianças entre as que ficaram sujeitas aos bombardeamentos e, por isso, a decisão foi acertada. Mas é importante sublinhar esta conclusão num momento em que assistiremos, muito provavelmente, ao início de uma pandemia de distúrbios mentais mais ou menos graves que está a ser ignorada pelas autoridades e pelo conjunto da sociedade em muitas das decisões que vão sendo tomadas.
Se em relação às crianças parece indiscutível que a sobrevivência física tem de ser a primeira de todas as prioridades, isso não é assim com toda as pessoas. Pelo menos não o pode ser contra a sua vontade. Foi por isso mesmo que, não há muito tempo, o Parlamento aprovou a morte assistida em condições muito específicas. Não é disso, tema bem diferente, que quero falar hoje. É da ideia de que os mais velhos irão ficar confinados em suas casas e nos lares, sem contacto com o resto da população, até haver uma vacina.
Cortar o contacto de idosos com a sociedade e as suas famílias por mais de um ano não seria uma decisão aceitável. Muito menos ouvindo apenas a opinião de pneumologistas e epidemiologistas. Porque há vida e saúde para além do vírus. E o que se proporia a muitos destes idosos seria uma tortura inimaginável e, em alguns casos, uma dolorosa e prolongada condenação à morte. Por isso, para qualquer proposta, a resposta deve ser: depende. Depende das idades, da situação geral de saúde, das condições em que estão e, no caso de estarem lúcidos, do mais importante: da sua vontade. Muitos idosos poderão preferir correr o risco e esse é um direito que ninguém lhes pode tirar, se o risco for apenas seu.
Outro facto que me foi recordado pelo bastonário é que a solidão mata mais pessoas do que a obesidade. Os efeitos devastadores da solidão são um dado científico incontestável que tem sido ignorado nas decisões que têm sido tomadas. Compreende-se. Para a maioria da população estamos a falar de uma solidão passageira (ou pouco solitária), com fim à vista. Mas não é assim para um idoso ou um doente terminal a quem se diz que ficará isolado do mundo por mais um ano. Não estaríamos, em alguns casos, a cometer um crime contra a sua saúde mental e, por isso, física?
Continuo a evitar ser treinador de bancada em matérias científicas. Deixo a ponderação de algumas decisões deste tipo para os especialistas. Acontece que os especialistas não têm sido ouvidos. Não estão, entre os cientistas e médicos ouvidos pelo primeiro-ministro e Presidente da República, psicólogos, psicólogos sociais e psiquiatras. E sem eles as medidas que são tomadas ignoram todos os dados científicos que permitam saber se a “cura” para esta doença não pode, em alguns casos, criar problemas muitíssimo mais graves para os seus destinatários do que aqueles que quer prevenir.
Segundo um estudo do Observatório da Solidão, 75% das pessoas entre os 70 e os 75 anos sentem que estão a perder tempo de vida. Cabe-lhes decidir até que ponto querem perder mais tempo para nos dar o conforto de não aparecerem nas únicas estatísticas em que temos os olhos postos. E cabe ao Estado e a nós todos pensar em alternativas para os que queiram algo diferente do que esperar um ano e meio. Haverá soluções intermédias para alguns. Para isso, os decisores têm de começar a ouvir mais do que quem lhes fale do vírus. E nós temos de despregar os olhos das aberturas dos telejornais e pensar em tudo o que desaba à nossa volta.