Natália Faria (Texto) e Nuno Ferreira Santos (Fotografia), in Público on-line
No pós-pandemia, o país não será resgatado da crise se não se acudir desde já aos problemas de saúde mental, alerta o psiquiatra Vítor Cotovio. Só nos primeiros oito meses de 2020, venderam-se 6,5 milhões de embalagens de antidepressivos.
Os erros de comunicação dos decisores políticos e a “obesidade informativa” foram os principais factores por detrás do maior relaxamento dos portugueses neste segundo confinamento, segundo o médico psiquiatra Vítor Cotovio. “Os números têm de ter rosto”, sob pena de nos habituarmos a “encarar 200 mortes diárias como se fosse uma coisa prosaica”, diz o membro do Conselho Nacional de Saúde Mental e director do hospital psiquiátrico Casa de Saúde do Telhal. Nesta entrevista, o psiquiatra aponta a crise de saúde mental instalada e lembra que ignorá-la será um erro com “dimensões catastróficas”. O primeiro passo? Contratar psicólogos para os centros de saúde, disponíveis para acompanhar os doentes em terapia, se não queremos correr o risco de ter uma sociedade medicalizada.
O que explica a resistência inicial generalizada ao segundo confinamento geral?
Um dos factores é a fadiga ou exaustão pandémica. Quando a pandemia começou, como era uma coisa nova e de âmbito global, as pessoas activaram o instinto de sobrevivência e reagiram com medo e ansiedade. O medo é uma resposta emocional a uma ameaça iminente, que é real e percepcionada por nós como uma ameaça à sobrevivência. E, portanto, quando as pessoas se começaram a aperceber da dimensão do problema e da existência de variáveis não se controlam, accionaram o medo. Como a pandemia trouxe uma crise sanitária, mas também a ameaça de uma crise económica, as pessoas activaram também as respostas ansiosas. Naquela altura, perante as imagens dos outros países, foi mais fácil mobilizar o mecanismo fundamental do ser humano, que abdicou de um bocadinho da sua liberdade em troca da segurança e da sobrevivência no sentido biológico do termo.
Em situação de crise ou de emergência, às vezes boa comunicação é saber quando se deve estar calado.
O problema é que o ser humano também tem uma capacidade de ir vulgarizando a ameaça. Se virmos sistematicamente uma criança a morrer de fome em África pela televisão, às tantas continuamos a comer e eles continuam a morrer de fome. E por isso se levanta aqui a questão da qualidade da comunicação.
O caudal de números de contágios e de mortes e os ziguezagues nas medidas nos diferentes períodos deixou-nos indiferentes perante a ameaça?
Em situação de crise ou de emergência, às vezes boa comunicação é saber quando se deve estar calado. E nós fomos centrando a comunicação numa informação sistemática de números, incorrendo naquilo a que eu chamo a obesidade informativa, que não é digerível de uma forma proveitosa.
Estes números sistemáticos têm de ter rosto, porque o ser humano precisa de narrativa e de contar histórias a si próprio para dar sentido à sua vida e para dar sentido aos acontecimentos. Se nos baseamos na divulgação sistemática de estatísticas, os números ficam frios e crus, não têm rosto, são vulgarizados, e as pessoas habituam-se a 200 mortes diárias como se fosse uma coisa prosaica. E não podem.
As pessoas vão vivendo naquilo a que costumo chamar angústia existencial pandémica, umas mais do que outras. As pessoas mais obsessivas ficam ainda mais obsessivas, as mais paranoicas e desconfiadas mais paranoides ficam.
Em segundo lugar, os decisores têm de ter cuidado na forma como publicamente emitem sinais que possam ser incoerentes. Mesmo que seja verdade, não podem andar a falar de testes positivos e depois negativos e depois falsos positivos e depois falsos negativos, porque isto cria nas pessoas — mesmo nos não negacionistas — um sentimento de dúvida que leva ao incumprimento. Na prática está-se a alimentar a frustração das pessoas e a potenciar a zanga, a contrariedade e a probabilidade de as pessoas não cumprirem.
Foi o comportamento errático dos decisores políticos que ajudou a que os números tivessem perdido o poder de modificar o comportamento dos portugueses?
A responsabilidade tem de ser partilhada. Os decisores políticos tiveram responsabilidade nos exemplos que lhe dei, assim como as pessoas individualmente não se podem demitir da sua responsabilidade. Também por causa da tal fadiga pandémica, o sistema límbico do ser humano, que é aquele que identifica os medos, tende com o tempo a ficar como que anestesiado ou indiferente. E se nesse momento emitimos sinais de que legitimamos o relaxamento e a distensão, como se fez no Natal e no Ano Novo, está-se a potenciar estes processos mentais e a contribuir para a dessensibilização.
Ora o sistema límbico comunica com o nosso cérebro executivo, o córtex pré-frontal que está atrás da testa, que é o que mede o risco e as alternativas e que toma as decisões. Se for dessensibilizado, e se as pessoas não são um bocadinho assustadas, às tantas o cérebro executivo faz disparates e corre riscos porque já não tem um sistema sinalizador a dizer ‘cuidado’. Por outro lado, quando se desconhece um vírus e o modo como se comporta, não fará grande sentido dizer às pessoas, como fez durante bastante tempo a Organização Mundial de Saúde, que não faz sentido pôr máscara. A prudência em situação de emergência é fundamental, obriga a acções ponderadas que nos impedem de nos precipitarmos a comunicar uma coisa em relação à qual amanhã temos de recuar. Mas isto é muito difícil no terreno real. Daí que devemos ter a humildade de não estar a apontar o dedo, sendo verdade que os decisores políticos têm de ter muito prudentes na comunicação.
Como avalia o impacto da pandemia na saúde mental das pessoas?
As pessoas vão vivendo naquilo a que costumo chamar angústia existencial pandémica, umas mais do que outras. As pessoas mais obsessivas ficam ainda mais obsessivas, as mais paranoicas e desconfiadas mais paranoides ficam, ou mais hipocondríacas ou com mais stress pós-traumático. Um estudo da Universidade de Oxford, do fim do ano, já diz que, três meses depois de estarem infectadas, uma em cada cinco pessoas teria uma doença mental identificada. E há um estudo com dados do ano passado do Instituto Ricardo Jorge que também já aponta que sete em cada dez pessoas que viveram este sofrimento pandémico ligado à quarentena têm sofrimento psicológico.
Eu fui aprendendo que as pessoas que, em confinamento, conseguiram apesar de tudo atenuar o mal-estar, organizar o seu quotidiano de forma mais disciplinada, que não se abandalharam na hora de levantar nem nas refeições e que conseguiram desligar do teletrabalho em determinados momentos para ver uma série ou para fazer o exercício físico que o Youtube também permite, estas pessoas, apesar de não estarem ao pé de outras, conseguiram aproximar-se mais do bem-estar.
Que perturbações psiquiátricas corremos maior risco de virem a emergir?
Neste tal 1/5 falamos da linha depressiva e da ansiedade. Na ansiedade cabem várias coisas: os ataques de pânico, a perturbação de stress pós-traumático, por se ter vivido uma situação dramática com risco de vida, e a depressão. No estudo do Instituto Ricardo Jorge, via-se que mais de 90% das pessoas vivem com a aflição de a parte económica poder ir abaixo. A pandemia está a pôr em risco as necessidades fisiológicas, a segurança, as necessidades sociais, do ego e de reconhecimento dos outros, e a auto-realização, sobretudo dos jovens, que não sabem se vão ter emprego. E o mesmo estudo diz que mais de metade das pessoas têm sintomas de depressão moderada a grave. Estamos a falar de números bem impactantes.
Quem não pensar agora que a saúde mental vai ser fundamental para recuperar o país está a cometer um erro estratégico de dimensões catastróficas. A saúde mental não pode estar fora das políticas da saúde no que diz respeito a resgatar o país. Porque, se estiverem doentes, as pessoas não vão poder trabalhar.
Eu estou a receber pessoas que tinha tratado há dez ou 15 anos e que nunca mais tinha visto e que voltaram agora com inquietações depressivo-ansiosas no contexto pandémico. E voltaram por causa do sentimento de ameaça e de medo.
Não se tem ouvido falar muito da necessidade de dar resposta aos problemas de saúde mental latentes.
Sem dúvida. Mas se não o fizermos, se nos limitarmos a actuar reactivamente, já vamos atrasados.
O que já devia estar a ser feito para antecipar estes problemas?
Foram activadas muitas medidas de emergência nos serviços de saúde mental para não deixar que os doentes, nomeadamente os psicóticos e com doenças crónicas, descompensassem. Mas é evidente que os recursos humanos para a saúde mental são muito curtos. Neste momento, na bazuca europeia, estão previstos pela primeira vez vários milhões para a saúde mental. Vamos ver se o dinheiro não é canalizado para outro lado.
Não havendo psicólogos nas escolas nem nos centros de saúde, o acesso aos cuidados de saúde mental não está bloqueado desde logo?
Uma das brechas enormes é essa. Não existem de facto psicólogos clínicos nas escolas que consigam responder, e não existem psicólogos nos centros de saúde, para as intervenções não farmacológicas, mas interventivas e pedagógicas, que neste momento seriam fundamentais.
O vírus é democrático na forma como é apanhado, mas não é democrático nas suas consequências
Muitas vezes as intervenções farmacológicas assumem-se como única alternativa porque as pessoas não têm acesso às intervenções cognitivo-comportamentais, de gestão da crise e do stress. Nos primeiros oito meses de 2020, segundo os dados do Infarmed, foram vendidas 6,5 milhões de embalagens de antidepressivos. Havia um aumento de 5% em relação ao período homólogo de 2019. E isto vai aumentar.
Eu estou a receber pessoas que tinha tratado há dez ou 15 anos e que nunca mais tinha visto e que voltaram agora com inquietações depressivo-ansiosas no contexto pandémico. E voltaram por causa do sentimento de ameaça e de medo, por não conseguirem dormir e por estarem a entrar em sofrimento psicológico agudo e incapacitante.
Devia então haver psicólogos nos centros de saúde para acompanhar as pessoas em terapia e não corrermos o risco de ficarmos daqui a algum tempo com uma sociedade completamente medicalizada?
E isso está previsto no Programa Nacional de Saúde Mental da Direcção-Geral da Saúde, mas tem de haver dinheiro para garantir que os psicólogos lá são colocados. O sofrimento está a instalar-se e, ou temos pessoas a garantir intervenções complementares entre a parte biológica e a parte psicológica, ou corremos esse risco. Por outro lado, sabe-se que os países que conseguem em situação de crise ser mais protectores em relação à saúde mental são aqueles que têm uma melhor rede social de apoio, que conseguem mais rapidamente garantir que a subsistência não fica comprometida ou que as hipotecas das casas não ficam comprometidas ou que os impostos podem ser adiados. Isto dá segurança às pessoas e contribui para a melhoria da saúde mental ou pelo menos para o seu não-agravamento.
Como avalia o risco de aumento dos suicídios, num país que já tem uma média de mil suicídios por ano?
É um risco com que temos de contar. Se as pessoas se deprimem e, quando olham para o futuro, o que sentem é que o futuro não está lá, que não vão conseguir reorganizar-se, continuar a sobreviver e a ter segurança para si e para os seus, a depressão passa a estar muito condicionada pelo desespero, pelo desalento, e pode seguir-se muito facilmente uma desistência. Se ainda por cima as pessoas sentem culpa por terem contaminado alguém… Isto é um imbróglio tão grande de sentimentos que as pessoas podem não ter capacidade para os gerir. Portanto, o risco está muito presente, mas não existem números ainda, embora isso se sinta quando falamos de pessoas dentro do registo depressivo.
A pandemia potencia a solidão. E “a solidão mata”
Passada a crise pandémica, que não as outras todas que hão-de seguir-se, justificar-se-ia a criação de um ministério da Solidão, como no Reino Unido?
Acho isso há muito tempo. Em Inglaterra, essa iniciativa foi criada com um conjunto de medidas interessantíssimas, com atenção à forma como se utilizavam os transportes, as tecnologias, os espaços das escolas, para que eles fossem o contrário da solidão. Porque a solidão mata. E pode ter consequências que podem ser maiores que a obesidade, maiores que um determinado número de cigarros por dia.
A solidão aumenta o risco de acidentes cérebro-vasculares e a descompensação da diabetes, diminui as defesas. A solidão de facto mata. E, neste momento, a pandemia activa mecanismos e processos ligados à solidão.
Que grupo etário elegeria como mais potencialmente afectado pela crise sanitária?
Os idosos sofrem mais com a solidão e com o facto de acharem que não estão a viver bem os poucos anos que ainda têm para viver, de saberem que têm comorbilidades que os põem mais em risco. Agora as novas variantes do vírus são mais transversais e, nas crianças, a preocupação é conseguirmos compensar o facto de elas estarem mais amputadas do toque e da relação com os outros – não esqueçamos que o toque também amadurece, também cria valor e princípio. Depois, os adolescentes por natureza são desconfinados, mas também são solidários se lhes passarmos uma boa comunicação, se utilizarmos líderes, actores, a dar a sua cara para tentar sensibilizá-los para que não andem a comer batatas fritas do pacote uns dos outros como fazem ainda.
A interrupção das actividades lectivas pode agravar o risco de andarem na rua a exponenciar o risco de contágio?
Se a comunicação fosse bem-feita, utilizando as tais figuras que eles idolatram, se eles virem no concreto o risco — e por isso digo que os números têm de ter rosto e têm de ter história —, eles também são solidários. Parece-me que o risco maior é o de estarmos a criar mais desigualdade social, porque o vírus é democrático na forma como é apanhado, mas não é democrático nas suas consequências.