4.2.21

A pobreza na pandemia

Alexandre Abreu, opinião, in Expresso

Numa altura em que a pandemia e o confinamento estão a agravar o problema da pobreza em Portugal, são necessárias respostas eficazes e fontes de informação mais rápidas

A escassez de dados disponíveis de forma atempada é um dos grandes problemas que se colocam à monitorização e combate à pobreza em Portugal e na Europa. O principal instrumento que serve de base à elaboração de estatísticas sobre os níveis de pobreza e a caracterização dos grupos mais vulneráveis é o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR), que é aplicado pelo Instituto Nacional de Estatística seguindo uma metodologia harmonizada a nível europeu pelo Eurostat. É um inquérito por amostragem que é realizado uma vez por ano e que se refere aos rendimentos do ano anterior, ao que acresce o tempo necessário ao tratamento, análise e publicação dos dados. Consequentemente, há sempre um desfasamento considerável entre o momento em que os dados são publicados e o momento a que dizem respeito.

O mais recente ICOR cujos dados estão disponíveis é o que foi realizado em 2019 com referência ao ano de 2018. Concluiu que 17,2% da população residente em Portugal encontrava-se então em risco de pobreza em Portugal, no sentido em que pertencia a famílias cujo rendimento disponível, considerando a estrutura familiar, era inferior a 60% da mediana, sofrendo por isso um forte risco de não conseguir satisfazer as necessidades físicas, culturais e sociais necessárias para uma vida saudável, segura e digna. O mesmo inquérito concluiu também que a percentagem de pessoas em risco de pobreza ou exclusão social, indicador que combina o risco de pobreza no sentido anterior com um conjunto de privações materiais severas (alimentação, aquecimento, comunicações, etc.) e com o reduzido acesso ao emprego, era em Portugal de 21,6%, ou 2,2 milhões de pessoas.

O valor da taxa de risco de pobreza em 2018 (17,2%) prossegue a tendência de evolução lenta mas consistentemente positiva verificada desde 2013, ano em que atingiu os 19,5%. No entanto, é claro para toda a gente que se trata de um valor que praticamente já nasceu desatualizado. Em condições normais, sem especiais alterações na situação económica ou no sentido e abrangência das políticas sociais, podemos esperar que a evolução dos níveis de pobreza seja relativamente estável e que a atualidade dos dados sobreviva ao tempo que medeia até à sua publicação. Num contexto de pandemia, confinamento, interrupção forçada de muitas atividades e recessão, é claro que isso não acontece.

Todos os indícios disponíveis sugerem que o contexto da pandemia é muito penalizadora da pobreza em vários sentidos: porque a perda de rendimentos tem afetado com maior probabilidade e intensidade quem já estava em situação de pobreza ou em risco de cair na pobreza; porque tem criado novos constrangimentos ao recurso às redes de solidariedade pessoais e comunitárias bem como às respostas sociais de emergência; e porque tem afetado novos grupos de novas formas, especialmente entre os trabalhadores precários e por conta própria, criando o que já tem sido designado como “os novos pobres da pandemia”, que nalguns casos viram a sua situação degradar-se de forma muito rápida e inesperada.

Considerando tudo isto, a principal associação de solidariedade europeia que se dedica especificamente ao problema da pobreza, a Rede Europeia Anti-Pobreza (EAPN), e a sua filial portuguesa, EAPN Portugal, viram-se nos seus últimos relatórios anuais Poverty Watch (europeu e nacional) na difícil situação de deverem analisar em detalhe os mais recentes dados do ICOR, relativos a 2018, tal como fazem a cada ano, ao mesmo tempo que alertam para os graves problemas e riscos que emergiram ao longo do último ano e que em muitos casos tornam desde já desatualizados esses dados anteriores.

No caso português, são de saudar algumas iniciativas da EAPN Portugal, nalguns casos em parceria com o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, para tentar colmatar esta escassez de informação, incluindo inquéritos rápidos online à pobreza e contactos sistemáticos com as instituições de solidariedade que prestam apoio no terreno. Permitiram confirmar algumas suspeitas e perceber novos elementos, quer quanto aos grupos relativamente mais afetados (os trabalhadores precários, as mulheres, os idosos,...), quer quanto às dificuldades sentidas (isolamento, condições de alojamento, problemas de saúde, perda de rendimentos,...), quer ainda quanto às dificuldades sentidas pelas próprias organizações.

No entanto, esta situação veio tornar clara a necessidade de criação de um sistema permanente mais abrangente, robusto e rigoroso de monitorização da pobreza, que poderá certamente contar com o contributo e participação de associações como a EAPN mas que deve ser montado e gerido pelo INE e pelo MTSSS. Na minha opinião, pode ser algo de análogo ao Inquérito à Força de Trabalho com base no qual são produzidas os principais dados estatísticos do emprego e desemprego: aplicado trimestralmente e por amostragem, produzindo resultados mais rápidos e atuais, mesmo que com uma amostra mais pequena.

No caso da pobreza, mais importante ainda do que os números da incidência é ter uma noção atempada de quais os grupos que estão a ser mais afetados, de que formas, e até que ponto é que as respostas sociais existentes estão a ser eficazes ou insuficientes. Talvez faça por isso mais sentido que a amostra seja dirigida especialmente para os grupos de risco mesmo que sacrificando a representatividade da população total, e que incorpore dimensões qualitativas. E um bom sistema de monitorização da pobreza poderá procurar incorporar também dados de outras fontes, como o recurso a dados anonimizados de consumo de energia, carregamento de telemóveis e outros, que no contexto, reconhecidamente muito distinto, de alguns países em desenvolvimento tem produzido resultados interessantes na identificação de bolsas de pobreza.

Deve ser dito que o governo está atento a este problema, tendo-se comprometido a promover a elaboração de uma nova Estratégia Nacional de Combate à Pobreza mesmo antes da eclosão da pandemia, e que a Comissão que está encarregada de elaborar esta estratégia tem estado a trabalhar com vista a que esta estratégia seja lançada em breve. Daí resultarão certamente recomendações importantes assentes nas premissas de que a pobreza tem raízes estruturais e exige um combate multidimensional nos planos dos apoios sociais, mas também do sistema fiscal, da regulação laboral, dos sistemas educativo e de saúde, do acesso à habitação e em vários outros domínios. Espero que possam também sair novas soluções que permitam uma monitorização mais fina e atempada da pobreza, de modo a informar as políticas e respostas sociais para que estas possam responder mais rápida e eficazmente.