Adriana Castro com Sofia Cristino e Rogério Matos, in JN
O desemprego provocado pela pandemia foi machadada nos rendimentos das famílias. Milhares de refeições oferecidas a crianças em 2020. O número continua a aumentar.
Aperto. É o que sente cada coração que ouve o riso de uma criança, numa fila, à espera para receber uma refeição. "A crise afeta-nos a todos", diz-se. Mas entre "todos", agora, há cada vez mais crianças em dificuldades. A perda de rendimentos de tantas famílias, no meio do desemprego provocado pela crise pandémica, obrigou pais e mães a pegar na mão dos filhos a quem deixaram de conseguir alimentar e ir bater à porta das associações a pedir comida. Muitas famílias estavam ligadas ao setor do turismo, ao nível da restauração e das limpezas. Por todo o país, há milhares de crianças a receber apoio alimentar.
Em 2020, foram mais de oito mil as refeições entregues a crianças com menos de dez anos pelo projeto Porta Solidária, no centro social da igreja do Marquês, no Porto, onde os dias são cada vez mais dolorosos. O cenário repete-se em Lisboa, onde há cada vez mais famílias com crianças a pedir ajuda. Na capital, como noutros concelhos, as refeições servidas nas escolas ajudam a mitigar a carência dos mais pequenos.
Na igreja do Marquês, sucedem-se os casos. Num dos balcões de atendimento, atira um menino: "Tenho fome. Dá-me pão". Não tem mais de sete anos, conta Ana Paula Santos, 62 anos, voluntária desde o início da pandemia, que lhe dá de imediato um saco de pão para comer. A avó, que o acompanha, envergonha-se. "Deixe-o abrir e comer", resolve a voluntária, já com outro saco na mão para a criança levar. "São estas coisas que nos fazem sentir tristes. E muitos têm vergonha e não aparecem", lamenta, revelando que "aparecem muitas grávidas". A elas, revela, dá a refeição a dobrar.
A primeira sensação de João Dias, 21 anos, "foi de choque". "Não é fácil ver uma criança numa fila, à chuva, no meio de tanta gente", confessa o voluntário. Um dos episódios mais poderosos que viveu foi uma conversa com um pai, preocupado porque "os filhos, que andam na escola primária, não tinham leite para levar para beber no intervalo das aulas".
"Descalabro total"
Todos os dias o número aumenta. As 150 pessoas que a associação já ajudava diariamente antes da pandemia transformaram-se em 600. Mais de 50 são crianças. Além dos alimentos, entrega roupas, calçado e até enxovais para bebé. "Um casal de refugiados teve um filho em dezembro e não tinha nada para a criança. Arranjámos tudo", diz Conceição Cardoso, 60 anos.
Noutras associações, a realidade é a mesma. A Mercado dos Santos, antes da pandemia dava cabazes a 11 famílias. Hoje, são 91. "São da Maia, Matosinhos, Gondomar... E quase todas com dois ou três filhos pequenos", conta a fundadora da associação, Marisa Barroca, 45 anos. Mais de uma centena de crianças receberá ajuda do grupo.
"Desde março do ano passado os pedidos foram aumentando e o número estabilizou em setembro. Agora tem sido o descalabro total. Só ontem recebemos mais seis novas famílias", suspira Marisa Barroca, referindo os casais brasileiros que trabalhavam no turismo e na restauração, com vínculos precários, que ficaram sem nada.
A associação Hope, no Porto, já chegou a abraçar 120 famílias ao mesmo tempo. Atualmente, são 67. "Algumas precisaram da nossa ajuda e entretanto saíram, mas já vieram ter connosco novamente", conta Cláudia Abreu, 42 anos. Além da ajuda alimentar, o trabalho da associação passa também por angariar roupa e calçado.
"É uma realidade que tem vindo a aumentar. Já chegamos a ver mães, com os filhos pela mão, a irem comer às carrinhas", lamenta Cláudia. Inicialmente, os veículos serviam quase exclusivamente para ajudar os sem-abrigo.
"No início foi uma aflição [ver as crianças na fila]. Além de não querermos que os meninos ficassem doentes, imaginávamos o que era o drama de uns pais não terem o que dar de comer aos filhos. Por isso, agora, os pais vêm buscar as comidas e apresentam o cartão de cidadão dos meninos", esclarece Conceição, da Porta Solidária. Há tempos, dizia-lhe um pai: "Não me importo de ficar dois dias sem comer, mas ver a minha filha com fome é que não". E chorava, conta a voluntária.
Mais leite para crianças
Em Lisboa, a Câmara está a entregar 820 refeições diárias nos jardins de infância e escolas primárias, mais 130 do que no final de maio de 2020. A Autarquia alargou a distribuição de refeições a todos os ciclos em setembro, entregando hoje 1912 até ao 12.º ano.
O Centro Cultural e Recreativo das Crianças do Cruzeiro e Rio Seco, que entrega comida nas freguesias da Ajuda e Alcântara, começou por distribuir 130 refeições diárias em junho do ano passado, estando agora nas 150 todos os dias, principalmente a famílias. "Em vez de darmos pacotes de leite pequenos, como está no protocolo, optamos por dar um litro de leite por pessoa, pois também há mais crianças que bebem leite. Temos famílias grandes, o pai, a mãe e as crianças. Sentimos que há mais pessoas a pedir", avança a diretora, Fátima Coelho.
"Não há dúvidas de que aumentou o número de pedidos. Há mais famílias a recorrerem, portanto há mais crianças", confirmou, por sua vez, Hunter Hadler, fundador da Refood.
O Centro de Apoio ao Sem Abrigo (CASA) de Setúbal, outra região marcada pela carência, fornece atualmente alimentação três vezes por semana a 42 crianças de 20 famílias apoiadas pela instituição. E só não são mais porque não há mais alimentos angariados. Existem ainda casos de famílias que recebem cabazes de alimentos pontuais e semanais: são 59. Na CASA, também se viu o número de sem-abrigo aumentar drasticamente desde o início da pandemia. Eram 20 as pessoas nessa situação apoiadas, hoje são 80.