Salomão Rodrigues, in JN
Instituições recusam acolher sem-abrigo por este estar acompanhado da cadela.
Estão ambos ligados a um passado de abandono, a uma vida de sobressaltos, à margem de afetos e conforto. Luís Pereira, abandonado na infância pela família e a sua cadela Kika, resgatada de um canil, são o mesmo reflexo da vida madrasta que, agora, os tenta separar.
Luís, de 35 anos, ex-toxicodependente, viveu na rua, da generosidade alheia, conviveu com delinquentes e excluídos. Sentiu frio e desalento, mas contou sempre com a companhia da inseparável Kika, a cadela proveniente de uma associação em Santa Maria da Feira que decidiu adotar.
A Kika foi o elo mais forte que Luís encontrou para enfrentar adversidades e, garante o próprio, determinante para o abandono da toxicodependência, que se espera definitivo.
Recentemente resgatado da rua por amigos de uma associação, Luís quer uma nova vida. Deseja trabalhar e ter uma habitação onde possa viver.
Mas as oportunidades para acolher Luís têm excluído, todas elas, a presença de Kika. Condição que não aceita.
"Não é uma hipótese que eu pense aceitar", responde de imediato. "Estava cansado da droga, de amigos falsos e de certas pessoas quando decidi ir buscar a Kika. Tem sido a minha companhia, a minha família e não há palavras que consigam descrever os sentimentos que ela me transmite", justifica.
Luís recorda que, em todas a dificuldades, "ela esteve sempre comigo. Eu não a abandono e ela não me abandona".
Se mais razões fossem necessárias, lembra que, sem a sua amiga, tem "medo de cair novamente na droga".
"Quero muito ir para uma casa e ter um emprego, se possível trabalhar com animais que é das coisas que mais gosto. Mas não aceitarei nada disso se tiver que me separar da Kika", garantiu.
A pressão de um grupo de amigos dedicados ao voluntariado, junto das entidades de cariz social, resultou na colocação temporária de Luís e a sua cadela numa pensão da cidade da Feira.
Contudo, foi já sensibilizado para o facto de não poder levar Kika para uma instituição que o acolha.
"Não entendo como há instituições, algumas até de cariz religioso, que consigam deixar no abandono os animais, separando-os das pessoas às quais estão habituados. Não me parece justo", explicou.
Enquanto espera que seja encontrada uma solução para o futuro dos dois, Luís tenta que a sua exposição pública possa alertar e sensibilizar consciências.
"Não é só pela Kika e por mim que luto. É também por outros animais e outras pessoas que passam pela mesma situação e que deviam merecer mais atenção e serem ajudadas", concluiu.
"Coração na Rua" procura emprego e habitação
O grupo de amigos voluntários que constituem o "Coração na Rua" ajudou Luís a conseguir abrigo temporário e continua a fornecer parte da alimentação que este precisa. Agora, procura habitação e trabalho.
"O Luís quer mudar de vida, trabalhar e não ser vitimizado. O Estado não pode deixar de acompanhar um sem-abrigo, só porque este tem um animal de estimação, nem impedir que seja alvo de uma recuperação se o animal for um elemento importante nessa fase", considerou Ivo Gomes, do "Coração na Rua".