Por Bruno Horta, in Público on-line
Necessidade de dinheiro por parte de familiares é uma das explicações para aumento do número de processos de interdição nos tribunais. Entre 2000 e 2010, número de casos passou de 636 para 1594.
Na última década mais do que duplicou o número de processos judiciais relativos a interdição e inabilitação, de acordo com números do Ministério da Justiça. Isto significa, segundo especialistas consultados pelo PÚBLICO, que as famílias e instituições estão mais preocupadas com quem se torna incapaz de gerir a sua vida e património, nomeadamente idosos. Mas em época de crise há também razões para admitir que este acréscimo esteja relacionado com a intenção por parte de familiares de obter proventos.
Os tribunais judiciais de primeira instância do continente e ilhas decretaram a interdição de 636 pessoas em 2000, 713 em 2002, 1080 em 2006 e 1594 em 2010, último ano para o qual o Ministério da Justiça, através do gabinete de imprensa, diz ter dados disponíveis. Indício claro do aumento é a também crescente publicação, obrigatória pelo Código do Processo Civil, de anúncios na imprensa diária referentes à entrada destes processos nos tribunais portugueses.
"Não temos certezas sobre o porquê do aumento, mas temos hipóteses", comenta o psiquiatra Fernando Vieira, director do Serviço de Clínica Forense do Instituto Nacional de Medicina Legal. Destacando que "a maior parte" dos visados nestes processos são idosos que sofrem de demência relacionada com Alzheimer ou com doenças vasculares, Fernando Vieira entende que "as instituições de saúde e as famílias querem salvaguardar-se de que estas pessoas não são colocadas em lares ou casas de repouso contra a própria vontade" e, por isso, iniciam processos de interdição e inabilitação. "É sinal de que os direitos dos idosos estão a ser mais respeitados e as famílias e instituições procuram actuar de forma mais transparente, o que nem sempre acontecia há alguns anos."
Em termos de comarcas, as dos grandes centros urbanos foram as que deram por findos mais processos destes em 2010: Baixo Vouga (99 acções), Lisboa (94), Grande Lisboa-Noroeste (66) e Porto (53). "São números animadores, demonstram maior sensibilização das pessoas para os problemas da demência", concorda Maria do Rosário dos Reis, advogada e presidente da Associação Alzheimer Portugal.
O Código Civil estabelece que a interdição se aplica a "todos aqueles que por anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira se mostrem incapazes de governar suas pessoas e bens". Quanto à inabilitação, abrange mais casos mas é menos limitadora: aplica-se àquelas mesmas situações e a pessoas que façam "abuso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes" e, por isso, se "mostrem incapazes de reger convenientemente o seu património". Provada a situação, através de testemunhas e perícias psiquiátricas, é nomeado pelos tribunais um tutor ou curador que passa a ter ascendente sobre a vontade da pessoa, o que é entendido como uma forma de protecção.
A actual crise económica e financeira pode ter algum peso nestes números, ao levar familiares a pedir a interdição de idosos com o objectivo de aceder ao dinheiro ou património destes. "De forma indirecta, é uma das explicações e pode estar relacionada com o crescente número de insolvências de pessoas singulares", avalia o advogado Adalberto Costa, autor do livro A Acção de Interdição e Inabilitação (2011). "É uma hipótese que não se pode excluir liminarmente, mas implica partir do princípio de que há muitas pessoas muito mal-intencionadas", contrapõe Fernando Vieira. Para o psiquiatra, a lei em questão "está feita no sentido de evitar abusos" e "os tribunais têm todos os cuidados para garantir que não se tira direitos a alguém só com objectivos materiais."
O mediático caso de interdição da empresária francesa Liliane Bettencourt, de 89 anos, reforça a hipótese. A maior accionista da marca de cosméticos L"Oréal foi processada pelos familiares depois de estes saberem que tinha oferecido obras de arte no valor de milhões de euros a François-Marie Banier, um fotógrafo com quem manteria uma relação. Um tribunal decretou em Outubro do ano passado que Liliane Bettencourt estava desapossada de faculdades para continuar a gerir o seu património, que passou a ser tutelado pela filha e netos, alegadamente contra a vontade da empresária.Maria do Rosário dos Reis lembra que "se não forem os tribunais a decretar a interdição, não há legitimidade por parte dos familiares para administrarem os bens e, pior ainda, essa administração não está sujeita a escrutínio". "Um reduzido número de processos é que poderia ser um sinal de aproveitamento", afirma. No entender da presidente da Associação Alzheimer Portugal, o envelhecimento da população (16,4% dos portugueses tinham 65 anos ou mais em 2001, dizem os Censos) pode ser uma das causas mais importantes para o elevado número de casos de demência, logo, de acções de interdição. O advogado Adalberto Costa nota que "há cada vez mais idosos que vivem sozinhos e quem está isolado perde capacidades mais depressa".