25.7.14

O capitalismo global de sucesso é este bairro de lata em Bombaim

Paulo Moura, in Público on-line

A repórter americana Katherine Boo viveu três anos num bairro de lata de Bombaim para descrever as condições miseráveis dos milhares que habitam os arredores do aeroporto da cidade. O Sonho de uma Outra Vida é o relato da aventura dos não-pobres do século XXI.
A contaminação da água é um dos principais riscos para a saúde dos pobres (e dos não-pobres) da Índia ALEX MASI/CORBIS

Durante três anos, Katherine Boo raramente fez perguntas. Limitava-se a ver e ouvir. Se por exemplo tivesse interrogado Sunil, o colector de lixo, sobre os assuntos que mais o interessavam, provavelmente teria ouvido um relatório furioso sobre a concorrência entre hindus e muçulmanos no negócio do lixo. A rivalidade de morte entre os oriundos dos subúrbios da cidade e os imigrantes do Norte. Ou os perigos da profissão, agravados pela crise mundial que fez baixar a procura de materiais para a reciclagem. Perigos como os arranhões feitos nos contentores de lixo, cujas feridas abrem e infectam, deixando entrar larvas que apodrecem a carne. Ou os piolhos na cabeça, o inchaço nas pernas, a gangrena que cresce nos dedos.

A crise obrigou Sunil a trabalhar mais horas e mais intensamente, ao ponto de ter parado de crescer e de ser ultrapassado em altura por Sunita, a irmã mais nova. As consequências da comparação na sua auto-estima talvez fossem mais um assunto que referisse à jornalista. O que ele nunca admitiria era a importância fundamental das árvores, das flores e dos pássaros na sua vida. Seria preciso não ter vivido ali, no bairro de Annawadi, nas imediações do aeroporto de Bombaim, desde que foi expulso de um orfanato, aos 11 anos, para saber identificar o amor pela natureza como uma realidade, um facto da vida.

“Ele não o sabia, e nunca mo teria dito, se eu lhe tivesse perguntado ‘O que achas mais bonito neste mundo?’ Não saberia responder a essa pergunta, não faz parte da sua linguagem”, explica, a partir de Washington, Katherine Boo ao Ípsilon, numa entrevista telefónica. “Mas eu reparei que ele se punha a ouvir os papagaios enquanto recolhia o lixo. Para se certificar de que ainda estavam lá. Porque os miúdos do bairro costumavam apanhar os papagaios para os vender no mercado, mas Sunil achava que eles deviam ser deixados nas árvores. Começámos a falar de papagaios, e eu percebi como aquilo era importante para ele."

Também Asha não teria contado a história da sua vida, as estratégias que a orientavam no bairro de lata, que lhe permitiram ganhar dinheiro e prestígio, e mandar a filha, a inteligente e bonita Manju, para a universidade. Asha não percebia que as suas actividades se chamavam corrupção. Apenas tentava imitar o comportamento dos mais ricos, dos privilegiados que viviam fora do bairro. Seguia os seus conselhos e o seu modelo. Que outra fonte ética poderia ter, além da que provém da própria lógica social?

"Desde 1991, a Índia tornou-se na maior história de sucesso do capitalismo moderno, e estas pessoas são parte dessa história. São o rosto do sucesso do capitalismo global, os não-pobres do século XXI"
Katherine Boo

Asha Wagekar, 39 anos, esposa de um alcoólico débil, trabalhador precário na construção civil, é a protagonista de O Sonho de Uma Outra Vida. “Queria ser uma mulher importante para as pessoas da cidade superior que desejavam explorar Annawadi e para as pessoas da cidade inferior que desejavam apenas sobreviver”, explica Katherine no livro. Percebeu que o administrador do bairro, Robert Pinto, não tinha verdadeira autoridade, e começou a conquistá-la, à sua maneira. Jogou com as rivalidades de etnia, religião e casta, tornando-se mediadora de conflitos, graças às relações privilegiadas que foi criando com os poderosos da política, da polícia, da religião e dos negócios. A uns e a outros cobrava dinheiro, em troca de favores ou de sexo.

Numa fase já avançada da sua carreira de influência, Asha tornou-se intermediária num programa governamental de empréstimos para pobres a juro bonificado. O objectivo do programa era ajudar empreendedores que criassem empregos nos bairros de lata, mas a corrupção do sistema permitia que se obtivesse dinheiro mediante a proposta de um negócio fictício. Um funcionário do governo local certificava o número de postos de trabalho que o novo negócio traria a uma determinada comunidade pobre. Um executivo do banco estatal aprovava o empréstimo, e depois o funcionário e o gerente do banco ficavam com uma parte do dinheiro. Asha, que era amiga do gerente do banco, fornecia-lhe os nomes dos que seriam beneficiários (a quem cobrava um “imposto”), e ficava com uma comissão do gerente.

Manju, a sua filha, cresceu condenando o estilo de vida da mãe, que no entanto lhe permitiu ascender à classe média, libertando-se da escravidão do bairro. Em toda Annawadi, foi a única pessoa a conseguir aceder ao ensino superior.

A pobreza dos não-pobres

Katherino Boo é uma prestigiada jornalista americana que se tem dedicado a relatar situações de pobreza – no seu país, no Reino Unido, e agora na Índia. Obteve um prémio Pulitzer e muitos outros, ao longo de mais de 20 anos de jornalismo investigativo e narrativo, no Washington Post e depois na New Yorker.

Quando foi viver algum tempo para Bombaim, após ter casado com um indiano, decidiu investigar a vida num bairro de lata. “Estávamos num país onde vive um terço dos pobres do mundo, e que ao mesmo tempo é protagonista de um dos maiores booms económicos de sempre. Um país onde o esforço consequente para erradicar a pobreza foi o maior alguma vez feito na História”, explica ao Ipsilon. “E não havia nenhum trabalho jornalístico sério a documentar isto, contando o que se passava nestas comunidades. Tudo o que fora feito e que eu li era muito orientado ideologicamente. Ou diziam: ‘Para os pobres, nada mudou, desde 1991’. Ou então garantiam: ‘Agora, nos bairros de lata, toda a gente vai para a universidade’. Era absurdo. A perspectiva ideológica não permitia observar a realidade."

Katherine esteve três anos no bairro de Annawadi para documentar a vida numa comunidade pobre onde, no entanto, de acordo com os critérios oficiais, a maioria da população vive acima do limiar da pobreza. Ou seja: todo o horror que é descrito, o mundo perigoso e fétido de barracas construídas em torno de um lago de esgoto, não é a pobreza da Índia. É antes o cenário do milagre económico.

Todas aquelas dezenas de milhares de pessoas vieram de aldeias onde há verdadeira pobreza. E quando lá regressam, de férias, apresentam-se como emigrantes de sucesso, exibindo roupas caras e telemóveis. “São recebidos nas aldeias como heróis”, conta Katherine.

Vieram para aquela zona da cidade na esperança de trabalhar na construção do aeroporto. Mais de 500 mil indianos chegavam anualmente a Bombaim, concentrando-se em Marol Naka, um cruzamento perto do aeroporto, onde os encarregados da construção civil vinham em camiões escolher os cerca de 200 que trabalhariam em cada dia. Os que não conseguiram emprego foram ficando, dedicando-se a trabalhos miseráveis e temporários, como a apanha de lixo para a reciclagem. Ocuparam um terreno abandonado, num bairro de barracas que foi crescendo.

De início, em 1991, os habitantes das barracas eram quase todos muçulmanos, mas o Shiv Sena, o partido fundamentalista hindu, foi ajudando hindus pobres do estado do Maharastra a fixarem-se no bairro, para ali aumentar o seu peso eleitoral e a sua influência.

É nesse contexto de luta política e étnica, entre a violência e a concorrência selvagem pelos parcos recursos, numa sociedade em crescimento acelerado, que se desenrola a luta pela sobrevivência em Annawadi. Uma luta feroz em que vale tudo, e durante a qual muitos morrem de doença, figuram como vítimas nas estatísticas do crime ou acabam a suicidar-se. Aqui a vida é frágil e precária, e muito poucos serão vencedores – mas há esperança.

Foi essa realidade que Katherine pretendeu retratar. “Desde 1991, a Índia tornou-se na maior história de sucesso do capitalismo moderno, e estas pessoas são parte dessa história. São o rosto do sucesso do capitalismo global, os não-pobres do século XXI."


Sem romantismo

Nos primeiros capítulos de O Sonho de Uma Outra Vida, Katherine Boo caracteriza o lugar e as personagens, mas depois a narrativa desenvolve-se em torno de algumas histórias dramáticas, como num romance.

“No início, comecei a seguir 80 famílias”, diz ao Ípsilon. “Depois fui seleccionando as personagens, não só porque tinham boas histórias, mas também porque iluminavam certos problemas do sistema que eu queria expor." Foi o caso de Fatima e Abdul, por exemplo. A primeira é uma mulher sem uma perna que acaba por se imolar pelo fogo. Antes de morrer ainda tem tempo de culpar Abdul, que acusava de a ter estrangulado. “A história de Abdul interessou-me porque o seu trabalho de apanha de lixo está ligado à economia global, incluindo a recessão de 2008. E também porque, ao ser acusado de um crime, permitiu-me mergulhar profundamente nos problemas do sistema judicial, da polícia e dos tribunais. A história de Fatima, por seu lado, levou-me a examinar a terrível qualidade do sistema de saúde para os pobres e dos hospitais públicos, onde não há medicamentos nem água, onde os médicos deixam os doentes morrer e depois culpam as famílias."

Em O Sonho de Uma Outra Vida as personagens não são “típicas”, nem representantes de coisa nenhuma. São únicas, complexas e como tal descritas e caracterizadas, nas suas imperfeições e contradições.

“Se descrevemos um tipo, não criamos uma ligação”, argumenta Katherine. “O que é preciso é descrever o indivíduo. Como escritora, não quero forçar o leitor a sentir uma identificação. Descrevo as pessoas como elas são, e os leitores sentem o que tiverem de sentir. Também não embelezo nem romantizo as personagens, tornando-as perfeitas. Amigos disseram-me para eu não contar certas coisas a respeito de Asha, por exemplo, porque tornariam impossível a empatia com ela. Mas eu quis mostra-la como ela era. Se conhecermos o seu contexto, compreenderemos melhor as decisões que tomou. De resto, eu estava a escrever sobre um bairro de lata de que ninguém ouvira falar. Disse aos meus editores: ‘Com que propósito iria tornar a história mais sentimental? Ninguém vai ler isto de qualquer forma'."

Quando foi publicado, em 2012, o livro tornou-se imediatamente um best-seller do New York Times. Ganhou o National Book Award, o Los Angeles Times Book Prize, o PEN/John Kenneth Galbraith Award, e vários outros prémios. Está traduzido em dezenas de línguas. A edição portuguesa está nas livrarias desde a semana passada.