Por Carlos Diogo Santos, in iOnline
Depois retirado à família biológica em 2004, João esperou cinco anos até ser adoptado. A mãe que quis ficar com aquela criança - portadora de VIH - devolveu-a ao Estado há um ano
Ao fim de um ano, João ainda pede para ligar à mãe, mas quase sempre a chamada acaba no voicemail: “Deve estar a trabalhar”. Tem 11 anos e imagina todos os dias o momento em que voltará para casa. Custa-lhe estar de novo numa instituição. A mãe adoptiva devolveu-o ao Estado no último ano. Diz que tinha em casa uma criança violenta. Mas na cabeça de João a culpa da separação é do excesso trabalho.
Usa a desculpa para justificar todas as falhas: quando o carro não para à porta sábado de manhã, para a visita prometida; quando quer dizer aos adultos da “nova casa” que, apesar do seu metro e trinta e dos seus 32 quilos, há quem o defenda; e até quando passa mais de um mês sem a ouvir. Vive convencido – porque desconhece a decisão do Ministério Público de entregar a sua guarda à instituição – que um dia a mãe que lhe dava o xarope e os quase vinte comprimidos que lhe controlam o VIH o virá buscar de vez.
Há noites em que não consegue disfarçar e a raiva entra a custo no pequeno quarto da vivenda dos arredores de Lisboa onde foi colocado. “Muda tão rapidamente, a cara dele passa de uma expressão zangada para um olhar de ódio tão profundo. Vem de dentro”, conta Lídia, uma das responsáveis da instituição. Mas João volta ao normal com a mesma ligeireza e nunca nos últimos meses o ódio – misturado com saudade – se tornou violento: “Tem as suas guerras, mas não podemos dizer que seja agressivo, bem pelo contrário”.
João não sabe ao certo os porquês desta história de adultos que é a sua vida e nem tão pouco se lembra de como se adaptou à instituição onde esteve quando foi retirado à família biológica, em 2004. Mas com um ano e meio e sem a referência da mãe ideal presente terá sido mais fácil.
O fim dos problemas Em 2009 uma voluntária de um casa de acolhimento de crianças decidiu iniciar um longo processo de adopção singular de uma criança com seis anos que ainda mantinha algum contacto com a sua família. Até aí, os mais próximos visitavam-no com pouca regularidade, devido às dificuldades económicas e aos problemas sociais. A saída da instituição fez a criança esquecer por completo a família biológica. Para trás ficaram os problemas de alcoolismo, as discussões constantes e as condições precárias em que chegou a viver. Ficou também – pensou ele durante anos – fechada a sete chaves a experiência de não ter mãe e de ser apenas mais um entre muitos meninos.
A tia, como lhe chamava na casa de acolhimento, passou a ser a nova mãe e com isso João ganhou uma avó e toda uma família com condições económicas e uma vida desafogada. Uma realidade muito diferente daquela que tinha vivido até então, porque “era uma criança que tinha crescido sem afecto”, explica fonte que conhece o caso.
Mas poucos anos depois de João entrar para a família, houve dois novos elementos que chegaram de rompante lá a casa. A mãe começou um namoro e logo de seguida nasce uma menina dessa relação. A “mana”, agora com dois anos, ainda faz os olhos castanhos de João ganharem outra vida quando o vai visitar à instituição.
O momento de felicidade para a família coincide com o regresso dos problemas à vida de João. Na altura com 9 anos, deixa de ser o centro das atenções e passa a ser o menino violento. Primeiro porque, segundo a descrição que serviu de base ao seu regresso à instituição, terá maltratado o cão da avó e depois porque, numa outra situação, terá tentado sufocar a irmã mais nova. O Ministério Público não teve dúvidas em aceitar o requerimento da mãe adoptiva e voltou a por João à guarda do Estado.
Quinta vida O regresso ao passado começou da pior maneira. João acabara de entrar para o 2.º ciclo e pela frente deixara de ter apenas uma professora. Eram muitos, tantos quantas as disciplinas. A pressão de voltar a ficar sem família fê-lo baixar os braços e acabou por ter as negativas suficientes para chumbar. “Esse foi um dos reflexos de que não tem tido tempo para se construir como pessoa”, diz Josefa uma das educadoras que nos últimos tempos se cruzou com a criança.
Na instituição de acolhimento temporário para onde foi logo encaminhado, a mãe adoptiva – que dificilmente perderá o estatuto legal – tinha várias barreiras para o contactar. Os telefonemas não podiam ser feitos a qualquer hora e as visitas tinham de ser previamente marcadas.
O que levou esta criança, porém, a cair nas mãos da Segurança Social não era um problema temporário e rapidamente surgiu a necessidade de transferi-la para um centro de acolhimento com outras características. Novamente, João é obrigado a mudar de escola, de amigos, de brinquedos. De vida: pela quinta vez em 10 anos.
Há já vários meses que chegou à vivenda onde hoje vive com rapazes e raparigas dos 10 aos 18 anos. E ainda está a tentar estabelecer amizades. João observa muito antes de falar, de dar um primeiro passo. “É reservado, às vezes parece que está apático mas está assimilar tudo antes de responder, de reagir”, explica Lídia. A sua racionalidade nem sempre é bem entendida pelos colegas, que como a maioria das crianças, reagem às emoções sem pensar duas vezes.
Nas aulas, estes últimos meses de estabilização pessoal já se notam. João teve apenas duas negativas e por isso conseguiu sem grandes dificuldades passar para o 6.º ano. A relação com a mãe, contudo continua a perturba-lo. Às vezes – sobretudo quando se aproxima a data de uma visita – basta ser obrigado a fazer os trabalhos de casa ou a tomar um banho para explodir: “Em minha casa…”.
Ao fim de vários meses com a guarda desta criança, os responsáveis pela instituição têm muitas dúvidas de que João seja o menino violento que punha em risco a segurança de animais ou da irmã, como está descrito na fundamentação da sua reinstitucionalização. Joaquim está aliás convencido de que o principal motivo “é a ausência de afecto para com o João por parte família adoptante”. E assegura que, “tendo em conta o comportamento actual”, a descrição feita no pedido de reinstitucionalização foi “empolada”.
“Será que alguma vez maltratou o cão da avó?”, questiona a advogada Rita Sassetti, adiantando que o Ministério Público tem obrigação de verificar as descrições dadas neste tipo de requerimento com toda atenção até porque num tribunal de família, o procurador tem de defender o interesse da criança. A jurista considera ainda que “anormal seria se não sentisse raiva”.
Um álbum vazio João acorda sempre cedo – por obrigação –, salta do beliche, desce as escadas e vai à cozinha onde toma um xarope e os oitos comprimidos ao pequeno-almoço. Desde muito novo tem noção de que não pode falhar e de que também não podem falhar com ele. Mas, nem por isso, a cozinha é lugar de obrigações. Longe disso. É a melhor divisão da nova casa.
E nem é que o seu corpo franzino – que aparenta ter oito anos – seja de muito alimento, mas sempre foi “maluco por doces”. Vinga-se naquilo que mais gosta, apesar de quase nunca ter fome. “Também, com a quantidade de medicamentos que toma para o VIH…”, soltam os que acompanham o seu caso.
Estes adultos que agora têm nas mãos o futuro de João dão-lhe, como aos restantes, uma pequena semanada, mas ele nunca investe esse dinheiro em brinquedos como os outros. “Prefere sempre comprar guloseimas”, conta Lídia.
Muito pouco do que agora tem é dado pela mãe. Até a roupa é quase toda oferecida pela instituição, porque a maioria da que trouxe da sua casa já não lhe serve e as poucas vezes que vai de visita o roupeiro não é renovado. Para os seus amigos mais próximos a vida dele é normal. Tão normal quanto as deles, que nem sabem o que é ter uma família. Mas para João a sua vida é diferente e oscila entre a felicidade do que já viveu e a ausência da pessoa de que mais gosta. “Tenho tantas saudades”, solta de vez em quando.
E é uma ausência tão grande que nem nunca teve direito a uma fotografia para expor na nova casa. “Essa falta do passado e de referências presentes causa-lhe raiva e, aí sim, ele acaba por ter um comportamento mais violento: rasga as fotografias que os colegas têm da família ou corta fios das colunas quando alguns ouvem música”, diz a educadora que desde o início soube travar aos excessos de João.
“Corre o dia todo atrás de mim, mas sabe que não pode fazer disparates quando eu estou, o que mostra que os comportamentos agressivos dele podem ser controlados se os adultos souberem lidar com ele. O João apenas nos quer testar, como qualquer criança”. Com os da sua idade, tudo é diferente: consegue por vezes “manipulá-los” e fazer com que fiquem de castigo por problemas que ele arranja.
A doença Ter VIH não tem qualquer problema: a vida de João é quase igual à de todos os outros. Joga à bola, várias horas por dia, perde-se na Playstation e também já foi apanhado pela febre das pulseiras de elástico. É por baixo da pala do boné que usa sempre – esse sim ainda vem de casa – que esconde muitas vezes um olhar de preocupações, de dúvidas. A criança que pede a todo o momento atenção aos funcionários com quem se dá melhor, pouco fala sobre as outras vidas ou sobre os raros encontros com a mãe. Tenta, enquanto consegue, guardar tudo.
O que tem de evitar – mais que os outros – são as lutas ou as acrobacias mais arriscadas. João tem noção de que ninguém pode tocar no seu sangue, sobretudo agora que está numa instituição onde é o único com VIH. Mas às vezes acontece. Pára imediatamente, vai chamar um adulto e lembra-o logo a regra básica: “Não te esqueças de por as luvas!”
Desde sempre que ouviu esta frase e há dias em que sugere mesmo que deve ser ele a por o penso para que evitar qualquer risco. Os colegas entendem. Mesmo os adversários de luta.
A doença de João está controlada e nunca foi difícil aos colegas perceber que o sangue dele é especial. Na última formação que foi dada para aprender a lidar com o VIH, João foi o mais curioso. Ele que sabe como ninguém os cuidados que precisa ter no dia-a-dia, não parou de fazer perguntas. Interrompia a cada momento para aprender um pouco mais sobre si.
A falta de preparação da actual da casa de acolhimento de João para lidar com crianças portadoras desta doença foi mais um dos obstáculos que teve de enfrentar quando lá chegou. Mas depressa lhes ensinou o básico.
Ainda assim, para que possa ter uma vida igual à dos seus amigos, João precisa de um acompanhamento médico constante. Pelo menos uma vez por mês tem de ir ao médico para verificar se a medicação está adequada ou se é preciso fazer algum ajuste. A mãe comprometeu-se a pagar essa despesa e tem cumprido sempre. Faz questão que o “filho” seja visto pelo médico privado que sempre o acompanhou e recusa que João seja controlado por médicos do Serviço Nacional de Saúde.
A doença de João é mais uma dos cordões umbilicais que o mantém ligados à mãe. O facto de essa responsabilidade ser assumida é uma entrave a por fim a esta adopção. Para fontes ligadas ao processo da criança, a mãe quer continuar a manter este laço apesar de não a reconhecer como família: “Os miúdos têm famílias idealizadas, mas eles também têm de ser idealizados pelas famílias. Neste caso só existe a primeira parte...”
Jogo do toca e foge A mãe liga-lhe quase sempre à noite depois de as responsáveis da instituição saírem, tenta evitar o confronto. É nesta espécie de conversas escondidas que surgem as promessas e as expectativas que acabam quase sempre da mesma maneira: com o João a tomar os oito comprimidos e o xarope do jantar e a adormecer no seu beliche.
E mesmo nas poucas vezes que o vem buscar para umas pequenas férias volta a entregá-lo durante o fim-de-semana, quando só lá está um funcionário a tomar conta de todas as crianças. É por isso que actualmente é considerada uma mãe adoptiva social ausente: não tem a guarda, mas não abdica de alguns vínculos.
Ainda este Verão já o foi buscar para umas pequenas férias. Para João, aquela semana passou a correr, tão rápido que nem houve tempo para que ele entrasse nas fotos de família que foram tiradas. “Tiramos várias, mas eu não fiquei em nenhuma”, contou.
Só que, por cada momento que se alimenta a esperança de João, cria-se uma entrave ao seu desenvolvimento. “Pergunto-me quais as consequências psicológicas para esta criança”, atira Rita Sassetti, que trabalha o direito da família e acompanha processos de adopção. A jurista diz mesmo que os contornos desta história só trazem interrogações sobre a forma como se lida com a adopção: “Para todos os efeitos não se pode chamar mãe adoptiva a quem só paga uma consulta e vai de vez em quando buscar o filho à instituição para passear. E não percebo como é que o Ministério Público vai nestas conversas”.
Até aos 18 anos? Talvez... A grande questão que se coloca actualmente é: João pode ser novamente adoptado e tentar aos 11 anos reconstruir uma vida que lhe tem sido negada? Pode enfim chamar mãe a alguém para sempre? A resposta é simples: por enquanto não, porque para efeitos legais tem uma família adoptiva.
Segundo a instituição, o comportamento de João está a ser avaliado ao pormenor para que se possam tirar conclusões mais precisas sobre a instabilidade que a mãe adoptiva representa para a sua vida. A instituição admite mesmo por fim à questão, mas diz que ainda não é a altura para isso. “Pode haver um parecer, mas teria de haver fundamentação para pedir que esta adopção seja declarada sem efeito”, explicam, adiantado que para isso é preciso esperar mais algum tempo. Até lá, João apenas poderá ter uma família amiga que o acolha de vez em quando. É o que diz a lei.
Outra hipótese é esta espera ser tão longa que acabe com o processo de autonomia, quando João fizer 18 anos. Isto, porque se se optar por aguardar que João e a família reúnam as condições para que voltem a viver no mesmo espaço o mais provável é que daqui a sete anos esteja tudo na mesma. Aí a única alternativa é a instrução de um processo com vista à sua autonomização. Só que João já está farto de esperar. Quando pede alguma coisa e lhe dizem para aguardar uns minutos olha para o relógio e cobra: “Já passaram!”
Todos os nomes usados nesta reportagem são fictícios, à excepção do da advogada Rira Sassetti