8.7.14

Com a verdade m’enganas: desemprego, emigração, empreendedorismo e a nossa culpa

Texto de Gabriel Leite Mota, in Público on-line (P3

Afinal, que culpa temos nós que os mercados se tenham desregulado a ponto de terem provocado o colapso do sistema financeiro mundial em 2008?

Nada torna uma mentira mais poderosa do que nela incluir algumas verdades… Quando ouvimos dizer que nós (os portugueses) estamos a pagar “as favas” de termos sido incompetentes, preguiçosos e despesistas (ó gente que vive acima das suas possibilidades…), que é culpa nossa esta falência às prestações em que nos encontramos, não tenhamos dúvidas: sim temos culpa!

Temos culpa de termos eleito políticos corruptos e incompetentes; temos culpa de não termos uma atitude cívica mais apurada; temos culpa de não termos um espírito mais empreendedor (económico, político, social e cultural); temos culpa de culpar sempre os outros e ficar à espera que os que estão “por cima” resolvam os problemas; temos culpa de fugir aos impostos; temos culpa de desviar dinheiros comunitários; temos culpa da nossa “chico-espertice” e do nosso desenrascanço; temos culpa de nos termos endividado muito para além das nossas possibilidades… Enfim, temos muitas culpas.

Paguemos, então, a factura com o desemprego e a emigração, com pobreza e privação! Deixemos que a crise nos cure a ver se, de uma vez por todas, conseguimos ser um país a sério (há 870 anos que andamos a tentar…).

Ou será que não é bem assim? Ou não será que esta é apenas a parte verdadeira que é usada para justificar uma grande mentira? Afinal, que culpa temos nós que os mercados se tenham desregulado a ponto de terem provocado o colapso do sistema financeiro mundial em 2008? Que culpa temos nós que esse mesmo sistema financeiro de que dependemos esteja a condenar os países europeus à inviabilidade? Que culpa temos nós que a globalização se tenha imposto, nos moldes em que se impôs, conduzindo a uma concorrência desleal entre as nações? Que culpa temos nós que os pequenos grupos com grandes interesses (desde as armas à droga, passando pela prostituição, até aos sectores económicos estratégicos mundiais) dominem a política mundial? Não, não temos culpa! Não se deixem enganar, são poucas as nossas culpas neste caldeirão infernal…

Não caiam na ladainha do “pecador-pagador” (que espia os seus pecados com dor…): aquilo que nós estamos a testemunhar são sintomas de uma doença na ordem mundial a que nenhum país se poderá arrogar imune, e que nenhum país sozinho será capaz de combater. Os paraísos fiscais, as guerras do petróleo, a “financeirização” da economia e a especulação fazem todos parte desta ordem mundial desequilibrada que o que mais tem feito é aumentar as desigualdades, provocar a instabilidade, semear tempestades… E só com uma transformação dessa ordem será possível curar a doença!

Entretanto, é certo, neste nosso país periférico e pobre resta-nos fazer o melhor possível (e que bem melhor podíamos fazer, que bem melhor podíamos estar), entender as nossas culpas e tentar superá-las, empreender e tomar, cada vez mais, as rédeas do nosso destino. Porém, para tudo isso, precisamos de começar por impedir que nos digam que as culpas são todas nossas e perceber, para dizer, “com a verdade já não me enganas”!