8.2.21

As intermitências do desemprego. Cristiana tinha três trabalhos e agora está em casa

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Tirou um curso profissional de informática com aplicação web, mas tem feito vida combinando o refeitório de uma escola com a caixa de um supermercado e umas horas num café. Um exemplo de resiliência e de precariedade agravada pela pandemia. Um capítulo extra a fechar a série sobre inclusão laboral

Até à passagem de ano, Cristiana Costa tinha três trabalhos. Num, o contrato chegou ao fim. Nos outros, o confinamento suspendeu a necessidade do seu labor. Esta sexta-feira, recebeu a carta do Instituto de Emprego e Formação Profissional a dizer que tem direito a subsídio de desemprego.

Na análise que faz das consequências da pandemia, o sociólogo Renato do Carmo costuma falar em desempregados imediatos. São pessoas com contratos a termo ou sem contrato, trabalhadores independentes, estagiários, em suma, trabalhadores precários – maioritariamente jovens e menos qualificados. Muitos sem protecção social, o que obrigou o país a criar respostas específicas.

Cristiana encaixa nesse perfil. A 18 de Março, estava Portugal ainda a aprender a lidar com o vírus SARS-Cov2, o Presidente da República declarou estado de emergência. Com o país confinado, a rapariga foi dispensada do trabalho no refeitório da escola – “Não havia crianças para almoçar”. E de dar uma ajuda no café.

Está habituada a esta intermitência. Desde 2018, a cada período escolar assina um novo contrato com a empresa de prestação de serviços que a coloca a servir os almoços numa escola de pré-escolar e 1º ciclo. Vão as crianças de férias, vai ela para o desemprego.

Inscreveu-se no centro de emprego, apesar das notícias desencorajadoras que todos os dias ouvia na televisão. Volvida uma semana, estavam a chamá-la para reforçar a equipa de operadores de caixa de um supermercado, como já acontecera noutras alturas.

Crise em forma de W

As crises podem assumir várias formas. Explica o economista Eugénio Rosa que muitas desenham um V – a uma quebra segue-se uma recuperação. Esta, encarada como a maior e mais repentina da história recente, esboça uma forma mais próxima de um W: quebra, recuperação, nova quebra, nova recuperação. A primeira quebra foi abrupta em Março, Abril, parte de Maio. A primeira recuperação — com criação de emprego desde Agosto — terminou em Dezembro.

Os dados sobre trabalhadores subutilizados – categoria em que o INE inclui os desempregados, os empregados a tempo parcial que desejariam trabalhar mais horas e os inactivos que querem trabalhar – ajudam a perceber essa história. Entre Março e Maio, esse grupo passou de 12,4% para 14,6%. Já em Dezembro, a estimativa provisória divulgada pelo INE apontava para uma taxa de 13,4%.

Cristiana viveu esse ziguezague. Em Maio, quando o país reabriu, voltaram a chamá-la para dar uma ajuda no café. A rede de supermercados quis assinar um novo contrato de três meses, para robustecer o serviço no Verão, e logo outro, para o fortalecer no Natal. Recomeçando as aulas presenciais, também retomou o seu lugar na escola.

Apesar da crise pandémica, a rapariga de 23 anos andava de um lado para outro, incansável. “Eu nunca lhe disse, mas é demais”, comenta a mãe, Olinda, vindo da sala de estar para a sala de jantar. “Não é por eu ser mãe, mas ter assim uma filha sabe bem. Dedica-se e vai para a frente. Se fosse eu, desistia.”

A experiência da mãe foi outra. “A mim, as coisas saíram muito direitinhas.” Aprendeu costura. Trabalhou como cravadeira em fábricas de calçado. E agora, que tem 50 anos e saúde débil, só deseja uma pensão de invalidez. “Eu não conseguia o que ela consegue.”

Nada se faz a pé desde a moradia da família, em Macieira da Lixa, no concelho de Felgueiras. Os pais emprestavam-lhe carro. O horário da escola é sempre igual. De segunda a sexta, entre as 9h e as 14h30. No supermercado, o horário é rotativo. Acontecia começar logo às 15h para um turno de três, quatro ou cinco horas. No café, era menos certo. “Só chamam se precisarem.”
Da informática para o que aparecesse

Não foi para isto que Cristiana se preparou. Tirou um curso profissional de informática com aplicação web. Aprendeu a programar, a construir páginas web e a fazer outras coisas que lhe permitiam imaginar-se a trabalhar numa empresa – num gabinete, numa oficina ou num laboratório. “O 12.º, já fiz um bocado à rasca. Achei que não ia conseguir ir para a universidade.”

Cumpriu um estágio numa loja. Puseram-na a fazer reposição de stock, atendimento ao balcão, colocação de alarmes. Enviou currículos. “Queria trabalhar na minha área. Ninguém respondia. Desanimei.” Abriu-se ao que quer que aparecesse. E o que apareceu foi um lugar temporário numa caixa de supermercado.

Aos 18/19 anos estava a cumprir uma sucessão de contratos de três meses no tal supermercado (ao qual haveria de voltar para cumprir nova sucessão de contratos aos 20/21 anos e, agora, aos 22/23)​. Já aos 20, uma amiga falou-lhe na empresa prestadora de serviços na área da restauração. Candidatou-se. E começou a assinar um contrato por cada período escolar e a servir refeições.

Até ao último dia do ano, andava naquela roda-viva. O contrato com o supermercado terminou no dia 31 de Dezembro. No dia 22 de Janeiro, as aulas foram suspensas até 5 de Fevereiro e Cristiana de imediato dispensada. Na impossibilidade de saber quando será retomado o ensino presencial, inscreveu-se no centro de emprego. Como esteve no supermercado nove meses, tem direito a subsídio.
O Estado a funcionar como dique

Pelas contas do Instituto Nacional de Estatística (INE), a taxa de desemprego estava em Dezembro nos 6,5%. Seria outra se não se classificassem muitos novos desempregados como inactivos. E se não fossem os apoios públicos à economia e ao emprego, com destaque para o layoff simplificado.

O Estado está a pagar de duas formas”, explica o economista Eugénio Rosa. Através da isenção de contribuições para a Segurança Social e através de financiamento do layoff. “O problema é que isso vai ter limites. Algumas empresas começam a libertar-se de trabalhadores. Se for um trabalhador mais qualificado, a empresa tem interesse em reter. Se não for, pode entender que facilmente o consegue substituir.”

O sociólogo Renato do Carmo recorre à metáfora do dique, uma obra de engenharia hidráulica que mantém porções de terra secas contendo águas correntes. O apoio à economia e ao emprego permitiu a muitas empresas “ganhar tempo, capacidade de adaptação, resistir ao impacto a crise”. “A questão que se põe neste momento é o que poderá acontecer com o impacto deste segundo confinamento”, diz.

Parece-lhe evidente que “será difícil algumas empresas – que conseguiriam resistir e adaptar-se, algumas até recuperar um pouco, porque começaram a ter mercado, procura interna – aguentarem este segundo confinamento”. “Podemos ter falências ou redução de pessoal, o que significa um aumento de desemprego, já no perfil de pessoas com vínculo”, prossegue. “Não estou a dizer que antes não tenha havido desemprego entre estas pessoas, mas o primeiro impacto foi mais no trabalho precário.”

O sociólogo Elísio Estanque faz leitura idêntica. “Já se sabia que o impacto na economia seria devastador, que a pandemia iria atirar muitos micro e pequenos negócios para a falência”, refere. Multiplicam-se as queixas, sobretudo, na cultura, na restauração, na hotelaria. Agora, sublinha Estanque, “tudo depende do quanto o surto vai durar”. Com a vacinação, espera-se que “daqui a meia dúzia de meses a economia comece a sua reabilitação”. Só que isso exige uma injecção de dinheiro quanto antes. Há um Plano de Recuperação e Resiliência, com uma previsão de 12,9 mil milhões de euros para aplicar em três grandes áreas: resiliência, transição digital e transição climática. O Quadro Comunitário de Apoio – PT2030 deverá contemplar outros 29,8 mil milhões de euros que se distribuirão por vários programas. “A questão tem muito que ver com os tempos”, corrobora Renato do Carmo. “Quanto tempo mais levará até virem essas verbas e que impacto terão na economia? Temo que, no entretanto, a economia se vá tornado cada vez mais vulnerável.” Os apoios concedidos aos trabalhadores vão chegando ao fim.

Ao que se vê no Portal da Segurança Social, em Dezembro 241.324 pessoas recebiam alguma prestação de desemprego. O Orçamento Suplementar de 2020 previa a prorrogação até ao fim do ano do subsídio social de desemprego, mas o Orçamento para 2021 não acautelou a sorte de quem está nessa situação. Só em Janeiro, 22 mil pessoas que recebiam essa prestação ficaram sem qualquer apoio. As famílias vão ficando cada vez mais aflitas.

Um desejo de estabilidade

Cristiana está no princípio da vida. Não tem encargos. Tem retaguarda familiar. Mora com os pais e a irmã, Marina, de 15 anos, numa casa espaçosa e confortável. O pai trabalha numa empresa de vinhos. A irmã dedica-se aos estudos para, daqui a uns anos, ser capaz de ingressar no ensino superior e estudar gestão de empresas. A mãe entretém-se a fazer arranjos de costura no atelier que montou no piso térreo. E Cristiana ajuda em casa. Espera que, mal o país abra, a voltem a chamar para a escola e para o café.

Não desgosta do que faz. O problema é o regime contratual. Que planos pode fazer quem tem contratos temporários a tempo parcial? “Não dá para gerir a minha vida. Estou sempre à espera. Se ficasse efectiva, tinha mais segurança. Já não andava de um lado para o outro. Ficava num sítio. Se ficasse efectiva, já podia fazer um crédito para um carro e, mais tarde, para uma casa.”

Quem sabe o que o futuro reserva? A pandemia já acelerou a digitalização, a flexibilidade, a precariedade. “Todos os cenários apontam para uma reconversão muito profunda do tecido económico”, torna Estanque. “É provável que isso se traduza num modelo de relações de trabalho onde a flexibilidade será maior. O quadro jurídico do trabalho terá de ser reajustado, mas não podemos perder de vista a segurança. A segurança terá de ser trabalhada através de legislação e da fiscalização. E os investimentos públicos terão de contemplar estes aspectos para não se permitir uma precarização generalizada a todos os sectores da economia.”

Por todo o lado se fala na transição para o digital. O Ministério da Economia lançou um Plano de Acção. Está quase a abrir a segunda fase das candidaturas ao Programa UPSkill destinado a desempregados, com o ensino secundário ou superior, que desejam qualificar-se para trabalhar com tecnologias digitais. Terá Cristiana, por fim, oportunidade de trabalhar na área que escolheu? Uma coisa é certa: não é de estar de braços cruzados. “Já me inscrevi para os censos!

O programa Incorpora, da Fundação “la Caixa”, em colaboração com o BPI e o IEFP, tem como objectivo fomentar o emprego para pessoas em situação de vulnerabilidade social. Nesta série de seis reportagens, o PÚBLICO apresenta um conjunto de retratos representativos dos diversos grupos-alvo da iniciativa. As reportagens são guiadas por critérios editoriais, sem qualquer relação directa com os apoios atribuídos pelo programa.