Sara Xavier Nunes, in Público on-line
Segundo os dados do Ministério da Educação, desde o início da pandemia, existem mais crianças a frequentar o ensino doméstico, tendo passado de 524 alunos para 723 neste ano lectivo. Pais ou familiares são tutores das crianças.
Neste ano lectivo houve um crescimento das matrículas no ensino doméstico, existindo actualmente 723 alunos neste tipo de ensino. Comparando com o ano lectivo de 2019/2020, em que estavam matriculados 524 alunos, houve um crescimento de 38% no número de estudantes matriculados nesta forma de ensino, de acordo com dados enviados pelo Ministério da Educação ao PÚBLICO.
Desde que a pandemia condicionou o método de ensino dos alunos, transferindo-os do regime presencial para o regime virtual, que muitos pais optaram por este método de ensino.
Aprender a escrever as letras do alfabeto, com espuma de barbear, durante o banho; aprender a dividir e a multiplicar enquanto se cozinha; aprender sobre fósseis numa praia; aprender francês com a avó; descobrir percentagens e arredondamentos com as eleições; ou até mesmo conhecer as estrelas e as constelações no Observatório Astronómico de Lisboa. O ensino doméstico é mesmo isso: flexibilidade. Flexibilidade de horários, metodologias, temas e actividades. “No ensino doméstico, nós, os tutores, partimos dos interesses das crianças e interligamos esses interesses aos conteúdos que estão no programa”, conta Suzy Vieira, mãe e tutora de um aluno em ensino doméstico.
Mais alunos em Lisboa e Porto
Nos últimos três anos lectivos, o de 2018/2019 foi o que registou um maior número de inscrições, com 866 alunos. Mas o número tinha diminuído para 524 no ano passado. As regiões onde mais crianças frequentam este tipo de ensino são as regiões de Lisboa e Vale do Tejo (352) e a região do Norte (178). A região com menos alunos é a do Alentejo (16), seguindo-se a região do Algarve com 77 e a zona Centro com 100.
Actualmente existem neste tipo de ensino mais alunos do 3.º e 4.º ano, 108 e 104 alunos, respectivamente, quando no ano passado existiam mais alunos do 2.º e 3.º ano, 81 em ambos. Os dados da Região Autónoma da Madeira e dos Açores não são contabilizados pelo ministério.
Foi em Março, quando muitas famílias portuguesas se viram a ficar confinadas, que “os pais tiveram contacto com o que era o quotidiano na escola dos seus filhos. Pela primeira vez perceberam que tipo de ensino lhes era incutido e de que forma é que aprendiam”, explica Elsa Ferreira, uma das fundadoras do Projecto Raízes – Educação Viva, Familiar e Ecopedagogica, uma associação que apoia os pais e alunos do ensino doméstico com oficinas e momentos de reflexão onde “se promove a criatividade e o contacto com a natureza”.
Muitos educadores começaram a explorar outras opções de ensino e descobriram o Ensino Doméstico (ED) e como era possível aprender-se em casa, de forma mais autónoma. “Se repararem, os pais não entram dentro da escola. E foi no confinamento, quando as aulas entraram dentro de casa, que muitos educadores tiveram o ‘clique’ e perceberam que queriam coisas diferentes para os seus filhos, depois de olharem para os manuais e para as metas curriculares”, conta Elsa Ferreira.
Suzy Vieira é fotografa, vive em Faro, e é a tutora de Davi, que está no 1.º ano de escolaridade e no primeiro ano de ED. “O meu filho até agora esteve na pré-primária pública, mas em Março decidi retirá-lo da creche e ficar com ele em casa”. A mãe confessa que a prioridade era preservar a saúde do filho, muito por causa do novo coronavírus, e por isso decidiu que neste ano lectivo também ia ficar com o Davi em casa. “Foi aí que comecei a procurar outras opções. Eu tenho uns sobrinhos que já tiveram esta experiência e conversei com o meu sogro, que também já tinha conhecimento deste tipo de ensino, decidi optar pelo ensino doméstico”.
A experiência de Céline Jacinto, mãe e tutora de Matias, e que agora gere um turismo rural nos Açores, é um pouco diferente da de Suzy mas com o mesmo fundamento: por causa da pandemia. “O meu filho chegava a casa, todos os dias, com dores de cabeça, por causa da máscara, que aliviavam um pouco quando ele a retirava”. Já não é a primeira vez que Matias está em ensino doméstico. “Agora está a correr muito bem. O Matias anda no 7.º ano e eu acredito que existem pais e filhos que têm perfil para o ensino doméstico, e nós somos uma família que lida bem com este tipo de ensino e somos muito privilegiados por ter esta oportunidade”.
Cada dia é diferente
Tal como Suzy, Céline e uma mãe que não se quis identificar, mas que partilhou a sua experiência, confirmam: o ensino doméstico não se restringe às quatro paredes de uma casa, apesar de agora a pandemia condicionar o movimento, e não é um tipo de ensino programado, cada dia é diferente, com actividades diferentes e sem grande planeamento. Para estas tutoras, a educação e o ensino regular português estão desactualizados e é necessário reavaliar os métodos de ensino, tornando a aprendizagem mais divertida, mais interactiva e mais estimulante. “Desde o início do ano, e tendo em conta a forma como o meu filho aprende, criámos e planeámos actividades que envolvem sair muito de casa, como ir a museus, falar com pessoas da comunidade, entre outras coisas. E foi nesse sentido que a pandemia, principalmente desde o início de Janeiro, nos afectou muito”, lamenta a tutora que preferiu não se identificar nem ao seu filho que está no 3.º ano de escolaridade.
Apesar de o ensino doméstico ser um ensino livre e sem muita programação, existe um cuidado dos tutores seguirem, ao seu ritmo, os conteúdos expressos nos manuais escolares de cada ano lectivo.
E a vertente social da criança?
Uma das principais críticas do ensino doméstico é a aparente pouca socialização da criança com outras crianças. Quando questionadas sobre esta problemática, as tutoras entrevistadas responderam o mesmo: a escola não é o único sítio onde as crianças convivem, pelo contrário. Suzy Vieira explica isso mesmo. “O meu filho é uma criança muito caseira, mas a vida social dele continua. Ele tem muitos primos, com quem brinca muito, tem uma irmã e, até a pandemia o impedir, tinha aulas de boxe onde também fez muitos amigos”. As actividades fora do contexto doméstico, como as aulas de inglês, explicações ou aulas de música, são uma óptima forma de socialização. “Nós promovemos convívios com os vizinhos e com um ou dois dos melhores amigos que ele tem. Não é por não ir à escola que não tem com quem conviver. E para além disso ele tem os irmãos com quem brincar também”, conta Céline.
Num sentido mais crítico, Elsa Ferreira, enquanto fundadora da associação Raízes, questiona se a escola regular é o local mais indicado e mais seguro para se fazer amigos. “Eu estive 13 anos a trabalhar como professora de teatro em escolas públicas e algumas privadas. E muito me questiono sobre o processo de socialização das crianças no ensino regular e do tempo de socialização que as crianças têm”.
Como inscrever o meu filho?
Existem quatro tipos de ensino alternativo [substituindo o dito ensino regular] em Portugal: o ensino articulado – onde o aluno articula o ensino artístico, dança ou música, com o regular -, o ensino para a itinerância e à distância – onde o aluno, com a sua família, necessita de viajar, não estando fixo numa região -, o ensino individual – orientado por um professor habilitado – e o ensino doméstico – normalmente leccionado pelos pais ou por um familiar, denominados tutores.
“O processo de adesão ao ensino doméstico é relativamente fácil” explica Céline. A portaria 69/2019, do dia 26 de Fevereiro, prevê que o aluno possa desenvolver o seu percurso académico fora da escola regular, dos 6 aos 18 anos. Quem guiar o aluno durante este processo tem de ser licenciado e viver na mesma casa que a criança.
Segundo o movimento Educação Livre, o tutor “Deverá fazer a matrícula ou renovação de matrícula no agrupamento de escolas ou estabelecimento de ensino privado da área de residência do aluno, da actividade profissional dos pais ou encarregados de educação, nas mesmas condições e prazos dos correspondentes graus de ensino”.
Na matrícula, o tutor terá de deixar um documento que identifique o nome completo da criança, o ano de escolaridade que frequenta, qual o percurso escolar que irá realizar, qual a pessoa que irá acompanhar o aluno e as respectivas habilitações académicas.
Depois de aprovado o pedido é ainda necessário realizar uma entrevista. Apesar do método educativo do aluno ser livre é importante respeitar as aprendizagens de cada ano porque os alunos, no final de cada ciclo (4.º, 6.º, 9.º e 12.º ano), serão avaliados.
O movimento Educação Livre contem um guia prático no seu site que ajuda a desmistificar a questão da avaliação. A avaliação dos alunos em ED, no 1.º, 2.º e 3.º ciclos processa-se por provas de equivalência à frequência nos anos terminais – 4.º, 6.º e 9.º ano - através da Avaliação Sumativa Externa com provas nacionais de final de ciclo que valem como provas de equivalência à frequência.
Os alunos realizam estas provas como autopropostos, obrigatoriamente, na 1.ª fase e têm de se inscrever para tal. Os alunos do 1.º e do 2.º ciclo que não tenham obtido aprovação nas provas na 1.ª fase podem repetir na 2.ª fase. Os alunos do 3.º ciclo podem repetir na 2.ª fase as provas de equivalência à frequência em todas as disciplinas em que não obtiveram aprovação na 1.ª fase, excepto nas disciplinas sujeitas a prova final, desde que estas lhes permitam a conclusão de ciclo. O aluno é considerado aprovado quando se verificam as condições de transição estabelecidas para o final dos 1.º, 2.º e 3.º ciclos do ensino regular, nas disciplinas em que realiza provas.
O ensino secundário encontra-se organizado em diferentes vias de educação e por isso os alunos inscritos em ED deverão cumprir na íntegra o plano de estudos do curso, uma vez que a conclusão do nível secundário depende da aprovação em todas as disciplinas do plano de estudo do respectivo curso. Essa aprovação decorre da realização das respectivas provas, no fim do ciclo de estudos de cada disciplina, na qualidade de autopropostos. Os alunos que pretendam realizar as provas de equivalência à frequência devem inscrever-se nos prazos estabelecidos para o efeito, de acordo com o calendário anual de exames. Para se candidatarem ao ensino superior, os alunos em ensino doméstico terão apenas de reunir os requisitos exigidos a todos os outros candidatos dependendo das condições de acesso definidas para o estabelecimento ou curso pretendido.
Num futuro sem pandemia
Apesar de os pais considerarem que as crianças, neste momento, estão mais seguras e confortáveis em casa, a maioria dos alunos quer regressar à escola no próximo ano lectivo. Matias quer muito regressar e voltar a estar no mesmo espaço que os colegas e aprender com eles. “Eu também gostava que ele voltasse, e fico feliz por ele querer voltar, porque eu sei que é um espaço de interacção social”, confessa a mãe.
No entanto, há receios sobre o novo “normal” que poderá surgir. “Esta foi uma experiência boa, mas a ideia é colocá-lo na escola novamente, se a situação pandémica estiver mais calma. Na verdade, ainda não decidimos, porque ele também gosta de estar em casa. Vai depender da situação e de como ele se sente psicologicamente”, conta a mãe de Davi.
Texto editado por Pedro Sales Dias