15.2.21

Hoje são os ciganos em Portugal. E amanhã?

Irene Flunser Pimentel, in Público on-line

Em Portugal, a par do racismo contra os negros, destaca-se a ciganofobia, que urge atacar nas suas causas e consequências.

Ao definir o anti-semitismo de novo tipo, “moderno”, surgido no século XIX, enquanto fenómeno político do pensamento ideológico racial, Hannah Arendt mostrou a diferença relativamente à expressão de ódio aos judeus de carácter religioso e cultural a que se assistia desde pelo menos a Idade Média. O anti-semitismo laico terá surgido, por volta de 1870, precisamente num período de emancipação e assimilação dos judeus na Europa (veja-se o caso Dreyfus, de um judeu no Exército). A par do darwinismo social e do eugenismo, revelou-se um anti-semitismo, segundo o qual os judeus já não eram identificados como pertencentes a uma minoria religiosa e cultural, mas enquanto “raça”. Depois, ao decidir, na base dos seus próprios critérios raciais, que determinado grupo de seres humanos não tinha o direito de viver na terra, o regime nazi escolheu o local e prazo do seu extermínio, num processo por etapas, no que é conhecido como o Holocausto (ou Shoá).

Menos conhecido foi o tratamento reservado aos ciganos pelo nazismo, no âmbito da sua ficção de “raça alemã ariana”. Esta tinha, desde logo, um problema: o facto de a sua pretensa origem ser indo-europeia, precisamente a mesma dos ciganos, originários do Noroeste da Índia, que migraram em vagas, a primeira entre cerca de 500 e 1000 d.C., a segunda, no século XV, para a Europa, Médio Oriente e Norte de África, e uma terceira, já no final do século XIX. Para resolver o “problema” dos nazis, estes consideraram só uma minoria dos ciganos de “raça pura”, a qual teria sido corrompida na maioria deles, devido a particularidades raciais que os tornavam nómadas e “associais”.

Por isso, a repressão dos ciganos da Grande Alemanha foi monopolizada pela Polícia Criminal (Kripo), que, a par das instâncias nazis de higiene racial, assimilou os Roma e Sinti “a criminosos profissionais ou habituais”. Em 27 de Abril de 1940, mais de 5000 ciganos foram deportados para a secção cigana do gueto de Lodz, na Polónia ocupada. Tanto aqui como na União Soviética, a principal tarefa dos grupos móveis da polícia nazi e da SS, a partir de Junho de 1941, foi a aniquilação de comissários políticos soviéticos, judeus e ciganos.

A partir de 1942, na “Operação Reinhard” (1941-43) – extermínio de todos os judeus europeus –, os nazis deportaram mais de 30.000 ciganos para os centros de morte de Chelmno, Belzec, Treblinka, Sobibor e Auschwitz-Birkenau. Em 16 de Dezembro desse ano, Himmler emitiu o Auschwitz Erlass, ordenando a deportação dos ciganos para o chamado “campo cigano” (Section BII) de Birkenau. Cerca de 3000 foram assassinados, em 2 de Agosto de 1944, num total de cerca de 23.000 Roma e Sinti, mortos em Birkenau. Segundo estudos, foram assassinados entre 220.000 e meio milhão no genocídio cigano (Porajmos).

E os ciganos em Portugal?

Em recentes – bons – artigos, em particular neste jornal, sobre o recente voto no Alentejo num candidato de extrema-direita, lembrei-me da análise de Arendt relativamente ao que qualificou de anti-semitismo moderno. Esse voto, provavelmente relacionado em parte com ciganofobia, surgiu entre populações que vivem lado a lado com ciganos, sobretudo a partir do momento em que crescentemente os filhos destes frequentam as escolas e algumas famílias se alojam em casas no interior das aldeias. Ou seja, uma minoria étnica é perseguida, tanto quando os seus elementos permanecem nómadas ou em bairros próprios (guetizados), como quando se integram na sociedade portuguesa da qual fazem parte, trabalhando e residindo, juntamente com os outros portugueses. Suprema ironia, aliás, é o facto de algumas populações zangadas – e bem – com o abandono a que estão votadas votarem no candidato presidencial do Chega, que pertenceu até recentemente ao partido que privatizou os correios, eliminou centros de saúde e votou ódio à peste grisalha.

Em Portugal, a par do racismo contra os negros, destaca-se a ciganofobia, que urge atacar nas suas causas e consequências. Sei que felizmente muitos dos meus concidadãos as têm estudado e proposto medidas, entre as quais de discriminação positiva. É certo que alguns ciganos enveredam pelo crime, como aliás outros portugueses, mas ninguém julga estes últimos como um grupo inteiro, incluindo a sua família, como ocorre com a etnia cigana.

Este jornal, há tempos, autocriticou-se por ter dado espaço de intervenção a anti-semitas e deve fazer o mesmo relativamente à ciganofobia. Em nome de uma errada defesa da “liberdade de expressão”, a comunicação social deixa expressar-se o ódio racial e no fundo a tentativa de acabar com essa própria liberdade. Enquanto historiadora, penso também que, no mínimo, os portugueses devem conhecer e valorizar a história e a cultura cigana e estas devem integrar os manuais escolares. Quem não gosta de flamenco?

Segundo José Gabriel Pereira Bastos, os ciganos chegaram a Portugal, pelo Alentejo, no final do século XV, e a sua presença já é revelada, em 1521, em O Auto das Ciganas, de Gil Vicente. Em 1526, saiu a primeira lei repressiva contra essa etnia e depois sucessivos reis promulgaram alvarás para impedir a entrada e expulsar os ciganos, condená-los às galés ou ao degredo nas colónias.

Por isso, os ciganos viveram em constante nomadismo, excluídos economicamente e socialmente da sociedade, e erigindo, por seu turno, barreiras protectoras em seu redor, até conquistarem a cidadania com a Constituição de 1822. Uma nova vaga de ciganos chegou a Portugal, pelo norte, no final do século XIX, no âmbito de uma terceira onda migratória na Europa. Em 1920, já em plena República, o regulamento da GNR prescrevia “severa vigilância” sobre os nómadas, e esta perseguição continuou, pelo menos, até 1985, havendo casos esporádicos de expulsão de ciganos, constitucionalmente impedida, como ocorreu, em 1993, em Ponte de Lima. É certo que muito há a fazer.
Há quem chame ao Chega o “pelotão da frente” da direita “democrática! Pelo contrário, o que há a fazer é lutar contra a exclusão e o ódio racial, distinguir entre o bem e o mal e agir em consequência, de forma ética e decente. Porque hoje os alvos são os ciganos, e amanhã?

Em Portugal, segundo dados de 2017, vivem cerca de 37 mil pessoas de etnia cigana, que representam cerca de 0,3% da população do país e 0,2% dos cerca de 18 milhões de ciganos do continente europeu. Tem de haver políticas de integração, de eliminação da pobreza, do analfabetismo e da discriminação. O Estudo Nacional das Comunidades Ciganas, de 2014, estimou que 27,1% de indivíduos de etnia cigana não sabiam ler nem escrever e apenas 2,3% frequentava o ensino secundário.

Cerca de 48% dos ciganos admitiu já ter passado fome e, recentemente, estimou-se que 32% viviam em alojamentos precários e, em 2016, que a taxa de participação dos ciganos portugueses no mercado de trabalho formal era de 35%. Mais de 76% dos ciganos denunciavam já terem sentido discriminação. Quanto ao tão apregoado Rendimento Social de Inserção, que, mais do que a necessária integração, visa garantir a sobrevivência de famílias, em 2019, dele beneficiaram 93.132 famílias – 2,32% das residentes em Portugal –, 4500 das quais de etnia cigana, ou seja, 3,8%.

Felizmente, assiste-se ao surgimento de um associativismo cigano e a uma lenta, mas crescente, integração de ciganos no espaço social e político, como revelaram as últimas eleições presidenciais, com o envolvimento no voto de parte das comunidades ciganas. Para quando um deputado cigano na AR, onde, tristemente, existe alguém cujo único programa consiste em espalhar o ódio destrutivo, a xenofobia e o racismo? E há quem chame ao Chega o “pelotão da frente” da direita “democrática! Pelo contrário, o que há a fazer é lutar contra a exclusão e o ódio racial, distinguir entre o bem e o mal e agir em consequência, de forma ética e decente. Porque hoje os alvos são os ciganos, e amanhã?