Ana Brito, in Público on-line
Autoridade da Concorrência lembra que tarifas reguladas “artificialmente baixas” podem criar desvios que terão de ser pagos em anos seguintes. ERSE anunciou medidas para conter falências de empresas no mercado liberalizado.
Perante a escalada de preços da electricidade nos mercados de energia, o ministro do Ambiente e da Acção Climática veio recentemente “tranquilizar os cidadãos” ao anunciar um conjunto de medidas para manter inalteradas as tarifas reguladas de 2022, aproveitando para lembrar que se os preços subirem no mercado liberalizado, o regresso ao regulado faz-se “num piscar de olhos”.
Para a Autoridade da Concorrência (AdC), os anúncios do ministro Matos Fernandes merecem algumas cautelas.
Por um lado, a possibilidade de os consumidores poderem retornar ao mercado regulado “pode levar à saída de operadores de menor dimensão do mercado liberalizado, afectando negativamente a concorrência”; por outro, manter “artificialmente baixas” as tarifas fixadas pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) pode vir a resultar em custos futuros que todos (no mercado regulado e liberalizado) terão de pagar.
As tarifas transitórias ou reguladas da electricidade são fixadas anualmente pela ERSE, embora com possibilidade de revisões trimestrais em alta ou em baixa consoante o custo de aquisição de energia do operador do mercado regulado, a SU Electricidade. Foi o que aconteceu em Julho e já este mês, em que a previsão da ERSE para o custo da SU Electricidade com a electricidade para o mercado regulado foi actualizada para 73,24 euros por Megawatt hora (MWh), valor que compara, por exemplo, com o preço médio de 173,65 euros por MWh fixado para sábado no mercado ibérico.
Perante o nível de preços actual, a AdC nota que mesmo que “os consumidores do mercado regulado beneficiem temporariamente de tarifas mais baixas, o desfasamento face aos preços do Mibel será repercutido nas tarifas dos anos seguintes”, porque há um desvio do valor entre os proveitos que o operador (a SU Electricidade) espera receber e o valor que efectivamente recebe.
Foi o que aconteceu em 2018, por exemplo, quando a energia no mercado grossista estava mais cara do que os custos de aquisição de energia estimados e repercutidos na tarifa regulada, levando os consumidores a suportar um desvio de 46 milhões de euros nas tarifas de 2019 (incluído na tarifa de acesso às redes, que é a componente que todas as famílias pagam por igual, quer estejam no regulado ou no liberalizado).
O ministro do Ambiente voltou ao tema este sábado, em entrevista à TSF, esclarecendo que manter inalterados os preços no mercado regulado não terá contribuirá para o défice tarifário. “É a lógica oposta à do défice tarifário. Estamos a colocar o dinheiro, e portanto a contrariar a existência de qualquer défice - as tais ‘almofadas’ que se tornaram numa expressão corrente — para inibir o aumento da electricidade”, explicou, esclarecendo que se trata de “dinheiro que existe sobretudo em saldos transitados dos fundos do Ministério do Ambiente”.
A preocupação com o preço a que a energia está a ser vendida pelo operador do mercado regulado já tinha levado os comercializadores independentes de energia, reunidos na Acemel, a fazer uma exposição à AdC, queixando-se da desigualdade de circunstâncias, porque as empresas em mercado livre têm actualmente custos muito superiores com a compra da electricidade necessária para satisfazer as suas carteiras de clientes, que são reflectidos nas propostas comerciais.
"Contágio sistémico"
Perante um contexto de “subida de preços” e “elevada volatilidade, sem precedentes”, e reconhecendo que existe “o risco de uma saída de operadores do mercado, de forma potencialmente desordenada”, a ERSE anunciou na sexta-feira medidas extraordinárias e válidas até final de Junho de 2022, que não alteram o actual valor da tarifa regulada de energia, mas que entende poderem preservar, “dentro das possibilidades do quadro legal e regulatório”, a concorrência no mercado livre e limitar “os impactes adversos" das condições de mercado (com valores “mais de três vezes superiores aos que se registavam no início de 2021 e nos anos precedentes”).
Em concreto, o regulador propõe que nos leilões de Produção em Regime Especial (PRE), a realizar pela SU Electricidade, “sejam oferecidos produtos de dimensão e maturidade temporal mais reduzidas”, destinados a comercializadores de pequena dimensão.
A ERSE vaticina que o acesso dos “comercializadores mais expostos a mecanismos complementares de cobertura dos riscos de preço de aprovisionamento na comercialização de electricidade, por recurso a energia produzida pelos produtores renováveis, através de um mecanismo competitivo simplificado” contribua para “limitar perdas operacionais e de diversidade empresarial”, protegendo a liberalização do sector energético.
Mas a entidade reguladora não exclui o cenário em que algumas das empresas vão mesmo ficar pelo caminho, pois os mecanismos que pretende pôr em prática também “visam permitir” a “saída controlada e minimamente programada de comercializadores de mercado para os quais se reduz rapidamente ou não existe viabilidade económica da sua operação”. Assim, evita-se a “quebra operacional decorrente de insolvências, por si só potenciadoras de um contágio sistémico aos operadores sobrantes em mercado”, refere a ERSE. Os clientes destes comercializadores passarão a ver os seus consumos assegurados pelo comercializador de último recurso.
Depois de o ministro do Ambiente ter anunciado, na semana que antecedeu as autárquicas, que entre transferências de fundos e retirada de custos do sistema eléctrico, num montante de 815 milhões de euros, as tarifas de acesso às redes descerão o suficiente para que o agravamento dos custos da energia não pese nas facturas mensais do mercado regulado no próximo ano (a proposta tarifária da ERSE será conhecida a 15 de Outubro), a associação dos comercializadores considerou positiva “a redução do valor de todas as componentes não energéticas da factura”.
Porém, a Acemel (que tem 20 associadas) também salientou que “a manutenção do actual preço da tarifa regulada”, que não representa “o valor de mercado [grossista] actual, nem a melhor estimativa de preço para 2022”, incentiva a fuga de consumidores para o regulado e acabará por ter “consequências nefastas para os comercializadores independentes” no mercado livre (já que estes, ao contrário dos grandes grupos que têm importantes centrais produtoras e fazem a gestão integrada das actividades, têm de recorrer ao mercado para comprar a electricidade que necessitam).
A associação admitia a “insolvência de muitas daquelas [empresas]” e a ameaça sobre “mais de dez mil empregos directos e indirectos”, apelando “ao apoio” aos comercializadores independentes “por via dos incentivos económicos que se reputem por necessários”.
Más notícias a caminho
Perante as notícias de falências noutros mercados (como o Reino Unido e a Dinamarca), o presidente da Enforcesco, empresa de energia da Covilhã que detém a marca de comercialização Yes Energy, afirmou ao PÚBLICO que “Portugal não deverá ser excepção no panorama europeu”.
“Este ano, quem não conseguiu ter uma cobertura em mercados de futuros” dos preços contratualizados com os clientes e tiver de comprar a electricidade no mercado diário “vai incorrer em perdas enormes”, disse João Nuno Serra, numa conversa antes de serem conhecidas as medidas extraordinárias da ERSE.
A Acemel admite a insolvência de muitas empresa e fala de uma ameaça sobre “mais de dez mil empregos directos e indirectos”
“Nós [na Yes Energy] sempre tivemos uma política de cobertura, mas essa não é, infelizmente, a realidade de todos os comercializadores”, assegurou. E se há empresas que “têm lá dentro outras actividades, de engenharia, eficiência energética ou auto-consumo”, e acabam por compensar uma coisa com a outra, “as comercializadoras puras não têm essa possibilidade”, acrescentou o presidente da Enforcesco, que também está na direcção da Acemel.
“Um consumidor não pode estar a pagar o dobro ou o triplo do que pagava na energia; percebo perfeitamente que essa tem de ser agora a maior preocupação [do Governo], o problema é que a seguir vêm outras”, refere o gestor. Entre elas, empresas e postos de trabalho que vão desaparecer, “e o retrocesso do mercado liberalizado”, com menos alternativas para os consumidores, “em sentido contrário do que dizem as regras europeias”, acrescentou.
Também a AdC defende a aplicação de medidas que consolidem o processo de liberalização no mercado retalhista da electricidade e a extinção das tarifas transitórias, um processo que se iniciou “há mais de dez anos e que tem sido sucessivamente prolongado”. O Governo estendeu as tarifas transitórias na electricidade e gás natural até 2025, considerando-as “um importante mecanismo de política pública que deve continuar a ser usada em benefício dos consumidores mais desfavorecidos e com menor acesso à informação”.
"Problemas estruturais"
João Nuno Serra critica ainda que se busquem “soluções imediatas”, sem procurar “resolver problemas estruturais do mercado ibérico”.
Lembrando que os preços do mercado diário estão a ser “impactados maioritariamente pelo gás, e pelas hídricas que se estão a colar ao preço do gás”, o presidente da Enforcesco referiu que os governantes (de Portugal e Espanha) “já deveriam saber” que os grupos económicos verticais, que têm produção e comercialização, “iam aproveitar estes momentos de mercado para tratar da sua vida”, alimentando as tesourarias com a produção.
Só isso é que torna “possível que uma EDP, perante esta tormenta no mercado, venha dizer que não vai mexer nos preços até final do ano”, exemplificou.