6.10.21

“Garantia Europeia para a Infância”: Temos uma oportunidade única para tirar da pobreza milhares de crianças em Portugal

Sérgio Costa Araújo, opinião, in Sapo

Cerca de uma em cada cinco crianças vive em situação de pobreza em Portugal e na Europa. Isto significa que cerca de uma em cada cinco crianças vê diariamente os seus direitos serem violados.

A 14 de Junho de 2021, durante a Presidência Portuguesa da União Europeia, foi adoptada por unanimidade a Recomendação do Conselho da União Europeia que estabelece uma “Garantia Europeia para a Infância”.

Esta “Garantia Europeia para a Infância” articula-se com a Estratégia Europeia dos Direitos da Criança e materializa o princípio número onze do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, cuja função é a prevenção e o combate à exclusão social e à pobreza infantil na Europa através da promoção da igualdade no acesso a oportunidades de vida.

Aqui incluem-se os direitos da criança a uma vida saudável, a aprender e a participar, a ter acesso a condições de contexto e de ambiente verdadeiramente estimulantes do seu desenvolvimento.

Esta "garantia" é dirigida substancialmente às crianças mais desfavorecidas e propõe-se retirar da pobreza e da exclusão social cinco milhões de menores em toda a Europa, até 2030.

Para isso, recomenda aos Estados da União que garantam “o acesso efectivo e gratuito à educação e acolhimento na primeira infância de elevada qualidade, à educação e a atividades em contexto escolar, a pelo menos uma refeição saudável por dia lectivo e a cuidados de saúde”. Devem ainda ser assegurado “o acesso efectivo a uma alimentação saudável e a uma habitação adequada”.

Os grupos de crianças mais desfavorecidos estão identificados e esperam-se medidas nacionais eficazes. Incluem crianças entregues a instituições; crianças com deficiência; crianças com problemas de saúde mental; crianças oriundas da imigração ou de minorias étnicas, em particular as crianças ciganas; crianças sem-abrigo ou em situação de privação habitacional grave e crianças de contextos familiares disfuncionais.

A adopção bem-sucedida desta Recomendação durante a Presidência Portuguesa da União Europeia, confere a Portugal responsabilidades acrescidas na concretização de um plano de acção nacional.

E o contexto actual é alarmante. A pandemia e o confinamento agravaram as desigualdades sociais. Crianças de grupos mais desfavorecidos sofrem e continuarão a sofrer desproporcionalmente os efeitos desta crise, pelo menos durante um horizonte temporal de 10 anos.

Cabe por isso a Portugal identificar a gama de fatores de risco que possam determinar a pobreza infantil e a exclusão social no nosso território. Deste modo, a implementação da “Garantia Europeia para a Infância” estará mais bem-adaptada às nossas circunstâncias e necessidades particulares, identificando de modo mais assertivo os grupos de crianças em situação de maior fragilidade, as barreiras que enfrentam, sublinhando o que muitas vezes é negligenciado num país não regionalizado: as circunstâncias regionais e locais particulares de cada território.

É imperativo que a construção do Plano de Acção Nacional avance com uma intensidade participativa até agora inédita, envolvendo todas as partes interessadas relevantes. A Recomendação aponta nessa direcção: “autoridades nacionais, regionais e locais, das organizações da economia social, das organizações não governamentais de promoção dos direitos das crianças, das próprias crianças e de outras partes interessadas, bem como a cooperação com estes intervenientes, na concepção, na execução e no acompanhamento de políticas e serviços de qualidade para as crianças”.

A construção de uma Plano de Acção desta natureza deve conter na sua génese preocupações de eficácia na sua concretização e ser concebido no quadro da Europa, a partir da nossa condição enquanto europeus.

Proponho um conjunto de quatro questões como contributo para o arranque da reflexão:
Quais os objetivos e as prioridades em Portugal em relação à implementação eficaz de uma “Garantia Europeia para a Infância” nos próximos meses?
Em que se traduz a implementação de um Plano de Acção bem-sucedido para o presente e o futuro dos grupos de crianças mais desfavorecidas do nosso país?
Que capacidades regionais e locais serão activadas para pôr em marcha um Plano de Acção?
O que precisa o Plano de Acção das crianças e de todas as partes interessadas - pessoas e organizações, que actuam no âmbito dos direitos das crianças?

Desde ontem que está em consulta pública a “Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030” que inclui no Eixo Estratégico 1 um conjunto de intenções que se propõem “reduzir a pobreza nas crianças e jovens e nas suas famílias”. Talvez fosse desejável fomentar a articulação entre os conteúdos deste eixo e futuras acções do Plano de Acção da “Garantia Europeia para a Infância” que fizessem sentido. Não é, contudo, bom sinal a ausência de referências a esta Garantia no preâmbulo do Diploma Legislativo que apresenta a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza.

Não é demais reforçar que sem um plano ambicioso, articulado, efectivamente participado, ancorado nas circunstâncias do presente e de olhos postos no futuro, o país corre o risco de deixar fugir uma oportunidade que certamente não se irá a repetir até 2030.