Solidários. ‘António’ foi sem-abrigo durante anos, mas conseguiu ajuda para encontrar trabalho e um espaço para viver. Em tempo de pandemia, os projetos de solidariedade ganham importância
São 38 os degraus que separam a nova casa de ‘António’, de 58 anos, da sua antiga morada: as ruas. No primeiro andar de um prédio em Alfornelos, na Amadora, os técnicos da Comunidade Vida e Paz terminam o processo de equipamento do apartamento para que possa, em breve, ser habitado por pessoas em situação de sem-abrigo. “Esta casa permite que cinco pessoas possam ter um projeto de vida diferente para poderem ser mais tarde reinseridas na sociedade”, explica a diretora da associação, Renata Alves. Para lá chegar, contudo, será preciso percorrer um longo caminho de adaptação, que conta com o apoio de uma equipa multidisciplinar que procura capacitar os utentes para a recuperação da autonomia financeira e social. “Estive uns anos como sem-abrigo”, partilha ‘António’ num dos três quartos. Pela janela vê mais do que a vista alcança. “Conseguiram arranjar-me esta ponte para a minha saída da rua e para a minha reinserção. Deram-me tempo para encontrar trabalho e reorganizar-me. Já estou a trabalhar na gestão de condomínios há dois meses, mas se não fossem estes apoios não conseguia sair da rua”, aponta. Este será apenas um de muitos nomes que ficam na lista de histórias que se querem de sucesso e que a Comunidade Vida e Paz pretende continuar a ajudar. A organização, que é uma das candidaturas vencedoras no Prémio BPI/Fundação “la Caixa” Solidário, tem agora €25 mil para financiar o arrendamento, equipamento e gestão de um novo apartamento na Amadora, onde serão integradas pessoas saídas da rua.
“Se não for com apoios, é muito difícil para nós conseguirmos retirar as pessoas da situação de sem-abrigo e dar-lhes dignidade”, sublinha Renata Alves, que refere o aumento de casos desde o início da pandemia. Neste momento, a instituição tem três casas na Amadora e outras três em Loures, além dos centros de alojamento, mas nem assim consegue dar resposta às solicitações. “Não é suficiente”, lamenta Renata, que explica que o número de refeições oferecidas nas ruas duplicou com a covid-19, de cerca de 400 para 800 ceias por noite.
A verdade é que, mais do que um espaço de abrigo, pessoas em situação vulnerável precisam de apoio multidisciplinar, nomeadamente na saúde e no emprego. A ONG Mundo a Sorrir, fundada há 16 anos no Porto, desenvolveu um projeto — com financiamento de €20 mil atribuído pelo Prémio BPI/Fundação “la Caixa” Solidário — para apoiar desempregados com problemas de saúde oral. “Muitas pessoas têm dificuldade no acesso ao mercado de trabalho por terem a sua saúde oral bastante comprometida”, contextualiza a responsável, Ana Simões. Conscientes desta realidade, procuraram unir esforços com outras instituições que identificam casos que precisam de ajuda e oferecem o tratamento adequado, reabilitando a saúde e fortalecendo a sua motivação para encontrar emprego. “Ao longo de um ano, pretendemos ajudar cerca de 30 pessoas com tratamento dentário e sessões de coaching motivacional com a ajuda de uma psicóloga.”
Este é também o caminho seguido pela Crescer, associação que, com o prémio de €30 mil, pretende abrir um segundo restaurante solidário para empregar sem-abrigo. “Têm formação na Escola de Hotelaria de Lisboa, apoio dos nossos psicólogos e depois estão seis meses no atendimento ao público”, conta o diretor, Américo Nave. Após este período de capacitação profissional e pessoal, o objetivo é integrar os participantes do projeto no mercado de trabalho. “Este espaço terá cerca de 150 lugares sentados e queremos ajudar 75 pessoas por ano”, afiança. Apesar das dificuldades trazidas pela pandemia, a instituição conseguiu, através do primeiro restaurante em Lisboa, ajudar 15 pessoas a ter novas experiências profissionais. Em tempo de crise social e económica, é a solidariedade organizada que vai colmatando as falhas do Estado, contribuindo para maior justiça social, um caso de cada vez.
HÁ 8200 PESSOAS A VIVER NA RUA
Apesar da estratégia nacional para a redução de cidadãos sem-abrigo, a pandemia agravou os números
Dependência de álcool ou substâncias psicoativas, desemprego ou precariedade e insuficiência financeira são os principais motivos na origem de situações de sem-abrigo. Os dados são de um inquérito realizado pela Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA), que dá conta da existência de 8200 cidadãos sem teto em todo o país. Destes, 4786 estão concentrados na Área Metropolitana de Lisboa e 1213 na região do Porto, as duas principais cidades nacionais e aquelas em que as dificuldades no arrendamento são mais notórias. Aliás, Renata Alves, diretora da Comunidade Vida e Paz, diz mesmo que “os efeitos da pandemia” estão a aumentar o número de casos de vulnerabilidade e mostra-se “preocupada” com o fim das moratórias dos créditos à habitação, que podem empurrar mais portugueses para a rua.
A fragilidade económica e social, agravada pelo contexto pandémico, dificulta o sucesso da ENIPSSA, que tem como objetivo ajudar à reintegração de pessoas em situação de sem-abrigo através, em primeiro lugar, do alojamento. Esta solução do Governo resultou na abertura, em 2021, de 600 vagas em programas de housing first e de apartamentos partilhados, num montante total de €1,7 milhões. Até ao final do ano, o Executivo prevê conseguir disponibilizar 1100 vagas de alojamento. Ainda de acordo com o inquérito da ENIPSSA, cerca de 38% dos casos em situação de sem-abrigo prolongam-se por um ano. Em sentido contrário, porém, o relatório indica um aumento no número de pessoas reabilitadas e com habitação permanente, que em 2020 chegou às 485, mais 39% do que em 2019.
Textos originalmente publicados no Expresso de 9 de outubro de 2021