Por Marta F. Reis, in iOnline
Director do SICAD revela que concorreu no Natal para continuar no cargo, para o qual foi nomeado provisoriamente
Faz no próximo domingo dois anos que foi criado o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), que veio substituir o extinto Instituto da Droga e Toxicodependência na coordenação das políticas nacionais para a droga, álcool e outros vícios. João Goulão, médico de há quase 30 anos a trabalhar em programas dirigidos a utilizadores problemáticos, faz um balanço da mudança e conta porque aceitou o convite de Paulo Macedo.
Faz dois que saiu em Diário da República a criação do SICAD. Que balanço faz?
Há um primeiro aspecto que me parece positivo, que foi o aumento da abrangência da intervenção a outras dependências. Há algum tempo que o defendíamos. Confesso que a decisão de extinguir o instituto e passar as competências de intervenção no terreno para as Administrações Regionais de Saúde (ARS) foi para além daquilo que eu esperava que acontecesse. O receio que essa passagem nos causou foi que, no universo de preocupações que as ARS têm de prestação de serviços à população em geral, este nicho ficasse diluído e as equipas fossem desmanteladas.
Isso aconteceu?
Não aconteceu e isso é o segundo aspecto que me parece francamente positivo.
O médico Carlos Ramalheira, que era delegado regional do IDT, demitiu-se no final de 2012 com receio de que a burocracia pusesse em causa o serviço moderno que tinham criado.
Foi um temor que todos tivemos. Mas posso dizer que não aconteceu. Tivemos um ano de transição em que se manteve o IDT mas o ano de 2013 foi a prova de fogo, com o funcionamento em pleno do SICAD e da nova estrutura. Em cada ARS foi criada uma estrutura que articula o trabalho nesta área e mantiveram-se as equipas como até aqui.
Qual foi a vantagem? É mais barato?
Em termos económicos não houve alterações, quanto muito é mais fácil gerir recursos. No IDT tínhamos alguma dificuldade com os problemas de acumulação de funções dos profissionais. Grosso modo, o orçamento global do IDT passou a estar repartido em seis fatias, uma para o SICAD e as restantes para as ARS. Evidentemente tem havido algum decréscimo mas não é dramático nem nada que inviabilize o trabalho.
Um decréscimo de quanto?
Chegámos a ter 75 milhões para o IDT e hoje o orçamento ronda os 69. Penso que houve sensibilidade ao facto de as condições sociais serem favoráveis a um recrudescimento destas problemáticas.
Mas o médico que em 2012 se demitiu referiu no ano passado que os cortes e aumento dos problemas antecipavam uma situação explosiva.
Sei disso, mas o que posso dizer é que esse receio que temos até ao momento não se concretizou. Obviamente que há mais burocracia, novas regras nos organismos da função pública em matéria de compromissos financeiros, a substituição de profissionais está mais difícil. Mas isso são dificuldades transversais e que não estão a comprometer o trabalho.
Mas sente que enquanto director do SICAD tem informação suficiente sobre o que se passa no terreno?
Sei o que me é transmitido pelas ARS.
É uma comunicação fácil?
É uma comunicação fluida, com interlocutores bem estabelecidos. A responsabilidade de intervenção no terreno foi atribuída às ARS e não posso estar todos os dias a intervir a menos que me cheguem alertas.
O relatório de 2012 apontava para uma redução nos tratamentos. Há um recuo na oferta?
Não tenho essa ideia. Se me disser que há constrangimentos à entrada, que há listas de espera, que as equipas não conseguem dar resposta a tudo, isso é verdade. Há constrangimentos, há falta de pessoal, mas não acredito que esteja a ter um grande impacto.
Listas de espera de quanto tempo?
De uma forma geral não ultrapassam duas semanas.
Isso é aceitável?
Está dentro do aceitável. Iniciar logo o tratamento pode até nem ser desejável. Algum tempo de espera, com altos e baixos, sempre existiu. A grande luta para acabar com as listas de espera aconteceu ainda no tempo do Serviço de Prevenção e Tratamento de Toxicodependências [criado em 1990], quando chegámos a ter seis meses para aceder a qualquer programa de tratamento. A partir daí isso nunca mais aconteceu.
Mas houve 30 mil pessoas em tratamento quando em 2011 se apontavam para a necessidade de abranger 40 mil.
Vai depender sempre da procura. Em meados dos anos 90 tínhamos uma estimativa de 100 mil consumidores problemáticos, sobretudo de heroína. Hoje estamos num momento em que felizmente o número de utilizadores problemáticos tem vindo a diminuir de forma sistemática e esse número vai sendo ajustado.
Então porque é que a situação explosiva de que falava Carlos Ramalheira é um temor de que partilha?
Porque há sinais importantes que importa valorizar como recaídas, pessoas que organizaram no passado as suas vidas mas estão na primeira linha de fragilidade social.
Consegue quantificar as recaídas em 2013?
Ainda não. Mas antes de termos a tradução em números, é preciso ter noção que é um problema que existe. Às vezes antes da evidência dos números, temos o que os técnicos nos dizem. Pessoas com 40 e 50 anos, que organizaram as suas vidas até com o nosso apoio e programas de integração no emprego, e que à medida que o desemprego sobe e se vêem atingidas, sentem dificuldades e desorientam-se. Pessoas que tinham a vida organizada há 10 anos mas que têm um background de dificuldades em lidar com a frustração.
Com que frequência surgem esses casos?
Com alguma. E isso é algo que exige capacidade de resposta porque são pessoas que se habituaram a contar connosco. Dito isto, os dados que tenho é de que tem sido possível acolhê-las. Mas a corda cada vez estica mais.
Em 2012 falou do aumento de recaídas e problemas de álcool mas também do consumo antidepressivos, associando-o à crise. O Infarmed fez um estudo que diz não se verificar relação entre o consumo e a vigência do Memorando. Tem havido um estudo sério do impacto da crise na saúde dos portugueses?
Estas coisas são todas multifactoriais. Mas historicamente os impactos estudados noutros países apontam para isso: são fenómenos que com grande probabilidade se podem observar.
Mas tanto no consumo de antidepressivos como no aumento de suicídios, a existência dessa correlação na actual crise nacional tem sido refutada por estudos.
Acho que é uma questão de senso comum, nem se quer é de grande evidência cientifica. Em áreas associadas a fenómenos de exclusão e marginalização, o impacto do empobrecimento não pode deixar de se sentir. No caso das drogas, penso que é preciso perceber que existe uma motivação muitas vezes ignorada para o consumo que é o prazer. Temos pessoas que usam drogas para potenciar o prazer, e aí temos substâncias mais estimulantes como a cocaína ou crack. E depois temos outras tipicamente usadas no alívio do desprazer, onde está o álcool e a heroína.
E são essas que estão a aumentar?
Não posso dizer que disparou, não temos de forma significativa novos casos. Mas são as substâncias a que podemos estar atentos porque são indicadores e há sinais de algum aumento. Objectivar com números, em resultado da crise há mais x, y ou z pessoas a consumir, não consigo dizer. Mas ninguém consegue.
Mas como vê estudos a atestar o contrário?
É negar a existência de pessoas concretas. Com grandes números e grandes estatísticas coloco um biombo entre mim e as pessoas.
É uma marca de como o governo tem lidado com esta crise?
Qualquer governo que gira o país neste tipo de contexto e dificuldades terá tendência a minimizar esses efeitos.
Alertou para a inversão da descriminação positiva de toxicodependentes, por exemplo na procura de emprego. Com o desemprego em níveis históricos, isto era evitável?
Neste contexto penso que seria muito complicado contrariar isso. Mas é preciso dizer que a base social deste tipo de politicas que desenvolvemos em Portugal em matéria de drogas vai-se estreitando. De há dez anos para cá tem havido um enorme consenso e este tema saiu da actualidade politica, não há grandes debates nem grande contestação. Agora, aquilo que tornou possível a descriminalização e medidas iniciadas nos anos 90 foi a droga ter sido um problema transversal a todas as áreas sociais. Os problemas da droga em Portugal não se circunscreveram aos pobres. A classe média tinha problemas e as pessoas começaram a dizer "o meu filho não é um criminoso, é alguém que precisa de ajuda". Foi daí que surgiu a nossa perspectiva humanista. Em alguns países a droga sempre foi um fenómeno dos feios porcos e maus. E nesses contextos, as políticas tendencialmente os torna ainda mais excluídos.
Hoje em dia, se o fenómeno recrudescesse, seria dos feios, porcos e maus?
Há esse risco. As características e o tipo de uso que provoca debilitação já não é transversal a todas as classes sociais e por isso a base social de apoio a politicas tem tendência a encurtar-se. E haverá mais gente a manifestar-se, a questionar porque é que não pagam taxas moderadoras, porque é que têm seringas de borla e os diabéticos têm dificuldades.
Já sente isso?
Não vou esperar que isso aconteça. Sinto-me na obrigação de alertar para este fenómeno. Se o fenómeno da droga aumentar, não significa fracasso das políticas mas exige a continuidade e alargamento das respostas.
É esse reforço que não tem acontecido?
Não se tem reforçado nada. Mas o que digo é que é prudente preparar o futuro e os serviços para uma realidade que pode aumentar.
Como vê as alterações no programa troca de seringas?
Penso que a saída das farmácias do circuito é uma perda significativa. Estava muito interiorizada nos hábitos dos utilizadores. Esta saída tem sido substituída maioritariamente pelas equipas de rua e não pelos centros de saúde. Tenho informação de que não são muito procurados. Faço um paralelo com a troca de seringas nas prisões. Está tudo aprovado, esta disponível, está legalmente aprovado mas não funciona. Fez-se formação, disponibilizaram-se os recursos, mas a forma como está delineado pressupõe uma auto delação do recurso. Pressupõe que vão declarar-se aos guardas, o que pelo menos no imaginário deles pode comprometer regalias ou saídas precárias.
Então há seringas mas não há procura?
Residual. Em relação aos centros de saúde, é um facto de que os toxicodependentes mais desorganizados convivem mal com o ambiente do centro de saúde, não é agradável para ambas as partes. Acredito que será difícil irem lá.
Teve oportunidade de discutir isso com a DGS?
Tive. Foi a solução possível de montar após a saída da ANF.
Mas o investimento não poderia ter sido feito em mais equipas de rua?
Eventualmente. Estou a crer que tudo será avaliado. Também não podemos ignorar que a percentagem de injectores tem vindo a decrescer.
Não há que temer uma situação como a da Grécia, em que aumentaram o VIH associado ao uso de droga?
Não. Na Grécia desapareceram todos os programas, estamos longe disso.
Como vê as críticas à destruição do SNS pelo corte no financiamento?
Tenho algum receio que o SNS tal como o conhecemos com equidade e universalidade vá encolhendo cada vez mais. Penso que é uma das componentes mais importantes do Estado Social. Penso que é uma obrigação do Estado, da sociedade, em contrapartida dos impostos que todos pagamos. Acho que faz muito mais sentido do que um sistema de acesso à saúde assente em seguros.
Mas pensa que é para aí se caminha?
De alguma forma a tendência é essa. Não sei se, ultrapassadas as dificuldades do país, será possível recuperar o élan e a solidez do SNS.
Tem-se falado disso, além do corte objectivo, o corte na reputação.
Sim, são consequências que vão perdurar e afastam as pessoas. A organização que vai emergir depois deste período é algo que não consigo antecipar.
Sendo militante do PCP, tem alguma linha mental a partir do qual não pactua com esse emagrecimento?
Penso muitas vezes acerca da utilidade da minha presença no actual contexto. Como referi, eu e muitos profissionais do IDT tivemos receio de um desmantelamento puro e simples das respostas as dependências. E quando fui convidado a assumir a direcção do SICAD, questionei o que iria fazer num contexto desses. Mas sou um adepto de políticas de redução de danos e achei que seria mais útil no desenho destas respostas estar por dentro do que sair a dizer não concordo.
Foi com um sentido de missão?
Francamente. Fui por achar que era mais útil ajudar a repensar a manutenção do essencial daquilo a que, ao fim ao cabo, aquilo a que dediquei a vida profissional quase toda. A brincar a brincar, ando nisto desde 86/87. Passei pelas estruturas regionais no Algarve, depois pelo SPTT, passei por vários governos e diferentes velocidades.
E tem noção de que é um percurso raro.
Absolutamente.
Como é que isso se consegue: com diplomacia, competência?
Acho que é com diplomacia. Agarrando-nos ao que é essencial e desvalorizar o que pode ser tido como acessório. Esta questão da passagem para as ARS: senti que era importante o meu papel para que as respostas não fossem desmanteladas. O que foi implementado tem muito a ver com o que pude defender. Mudou a responsabilidade mas as equipas mantêm-se.
Mas a ideia inicial não era essa?
A ideia inicial tanto quanto sei não existia. Decidiu-se que ia para os cuidados de saúde primários, para os clínicos gerais. Eu sou médico de família. Acho que têm um papel fundamental na relação que se estabelece com as famílias, mas daí a terem os meios técnicos e disponibilidade para ver toxicodependentes... Lembro-me de ter 30 doentes à espera, velhinhas para medir a tensão. Aparecia um toxicodependente e dava-me cabo da consulta. Era preciso muito tempo. Daí a necessidade de haver respostas um bocado ao lado. É completamente diferente ter uma equipa que desde a pessoa que faz o atendimento, que recolhe a história, a assistente social até chegar ao psicólogo ou ao médico, estão dedicados.
Aceitou porque estava certo que ia a tempo de desenhar a transição?
Estava certo que a minha presença era importante. E um ano depois, quando vejo que as equipas no essencial se mantêm coesas, acho que fiz bem. Tanto acho que fiz bem que agora que o meu lugar foi posto a concurso concorri para director geral do SICAD.
Perguntava-lhe se tinha uma linha na sua cabeça?
Tenho uma linha na minha cabeça que ainda não foi ultrapassada. Por isso concorri.
Desejos para 2014?
Que seja possível olear todas as respostas no novo contexto organizacional para não haja perda de capacidade de resposta.
E para o país?
Que consigamos ultrapassar esta fase de enormes dificuldades que atingem cada vez mais camadas da população e finalmente respirar. Andar na rua e ver sorrisos em vez de caras fechadas. Hoje vemos pessoas com cara de sofrimento e preocupadas. Qualquer pessoa vê isso, os meses parecem cada vez mais compridos.