por Rita Costa, doutoranda em Antropologia (CRIA-ISCTE) e Filipe Reis (CRIA-ISCTE), in Confinaria
Comemora-se hoje o dia internacional das pessoas ciganas. Não sabemos se os jornais e as televisões, aproveitando a efeméride, irão publicar textos ou reportagens sobre as comunidades e famílias ciganas, nestes tempos de pandemia. Mas, tendo em conta a falta de atenção que os media em Portugal, nestes tempos excecionais, têm dedicado às minorias e grupos vulneráveis (como imigrantes pobres e refugiados), temos sérias dúvidas. Uma busca simples na internet revela que, nas 3 últimas semanas, muito pouco se tem escrito, reportado ou falado destas pessoas e suas famílias. E as poucas notícias que surgem não são animadoras.
Cabazes solidários angariados por associações ciganas nas redes sociais, imagens gentilmente cedidas por um ativista Roma
Antes de o Estado de Emergência ter entrado em vigor, na semana em que muitas pessoas começaram voluntariamente a confinar-se e a retirar as crianças das escolas, o Público ecoava a denúncia da Associação Habita sobre a continuação dos despejos de famílias inteiras no Bairro Alfredo Bensaúde, nos Olivais, ação que só terminou a 18 de março. Mas já era demasiado tarde para muitas dessas famílias que hoje cumprem o isolamento social na rua, em barracas improvisadas à porta das suas antigas casas, agora vazias. Paradoxalmente, dias antes (10 de março) estes mesmos cidadãos lisboetas alvo de despejo, foram impedidos de assistir presencialmente à reunião da Assembleia Municipal de Lisboa, decisão justificada “com o coronavírus e com uma suposta ameaça de invasão das instalações”. Um comunicado da Associação de Mediadores Ciganos de Portugal (AMEC) denunciando e alertando para a situação de absoluta precariedade de dezenas de famílias em Beja, teve eco mediático (aqui e ali) e o seu presidente foi escutado numa curta peça na rádio pública (23 de março). Uns dias antes (19 de março, 3 dias após a instauração do Estado de Emergência) o jornal Público noticiava que várias famílias ciganas foram expulsas pela Guarda Civil espanhola dos arredores de Badajoz e forçadas a voltar a Portugal. No dia 26 de março um responsável regional da Caritas chamava a atenção para a situação de carência alimentar de famílias no distrito da Guarda, após a proibição da realização de feiras. No dia 27, um jornal online regional propagandeava que “Câmara de Portimão ensina a comunidade de etnia cigana a ter boas práticas.” E, não fosse o diabo tecê-las, acrescentava que “para além de técnicos as ações tiveram o apoio da GNR”. Finalmente, no dia 2 de abril, a Revista Sábado noticiava as recomendações que uma estimável associação ligada ao desenvolvimento local (a ANIMAR) enviou ao Governo elencando um conjunto de medidas para proteger as comunidades ciganas, nomeadamente no que concerne ao apoio escolar das crianças. E é tudo.
Em geral, os meios de comunicação estão sobretudo preocupados e focados com outros confinamentos mais glamourosos e/ou mais próximos da experiência dos próprios repórteres e com outras potenciais vítimas da covid19. A presença de pessoas ciganas no espaço mediático escapa, ocasionalmente, ao estereótipo, ao preconceito e ao racismo enraizados e isso deve-se, sobretudo, ao mérito de uma nova, escolarizada e ativa geração de mediadores(as) e ativistas Roma. Mas trata-se de exceções, normalmente envolvendo a presença tutelar do Estado, ou de organismos do Estado, e respetivos gabinetes de comunicação.
Esta invisibilidade é, no entanto, contrariada por formas de auto-organização e resiliência que se tecem e entretecem graças à mobilização das próprias comunidades e de pessoas concretas. É nas redes sociais (e não nos media convencionais) que é possível observar e perceber como parte significativa da população portuguesa cigana está a viver e a sobreviver ao confinamento, nestes tempos de pandemia. Pessoas que, incansavelmente, a partir de suas casas, multiplicam iniciativas para que todos fiquem bem (#vamostodosficarbem), fazendo chegar bens de primeira necessidade às comunidades e famílias que mais precisam. Assiste-se à criação de redes de solidariedade para comprar alimentos e medicamentos, à partilha de experiências e à sensibilização empática dos concidadãos (ciganos e não ciganos) para a necessidade do isolamento social. Muitas famílias e comunidades vivem situações dramáticas. “Vamos merar todos a hambre”, alertava recentemente um ativista cigano. Há também quem se empenhe na mobilização internacional para proteger outras comunidades Roma espalhadas pelo mundo da catástrofe (#SaveRomafromCorona). Pessoas que não deixam de se lembrar (e de nos lembrar) que, num tempo em que o gesto de lavar as mãos se tornou símbolo de luta contra a covid19, vivem, em Portugal, largas centenas de famílias com acesso mínimo ao fornecimento de água. Acontece no Algarve, no Alentejo ou às portas de Lisboa, no bairro da Torre. Comemora-se hoje o dia internacional das pessoas ciganas.
Rita Costa, São Martinho do Bispo (Coimbra) e Filipe Reis, Alvalade (Lisboa)
8 de abril de 2020.