8.4.20

Os direitos das crianças não podem ir de quarentena

Marco Paulino, in o Observador

Mesmo em tempo de pandemia, há informação não relacionada com a covid-19 que também nos deve inquietar enquanto sociedade. Na primeira das duas crónicas deste mês para o Expresso, o psicólogo clínico e forense Mauro Paulino escreve sobre uma dessas situações, a da violência sobre crianças

Mesmo em tempo de pandemia, há informação não relacionada com a covid-19 que também nos deve inquietar enquanto sociedade. Na primeira das duas crónicas deste mês para o Expresso, o psicólogo clínico e forense Mauro Paulino escreve sobre uma dessas situações, a da violência sobre crianças

Paradoxalmente, neste mês de abril, que, desde o início do século XXI, é assinalado como o Mês Internacional da Prevenção dos Maus-Tratos na Infância em vários países, tendo como simbologia o laço azul, a comunicação social traz à tona informação que nos deve inquietar, enquanto sociedade, mesmo em tempo de pandemia

O “Público” avançou que as crianças em risco de maus-tratos deixaram de receber visitas de rotina dos técnicos, reduzindo-se os atendimentos e visitas ao domicílio por parte das comissões de proteção ao estritamente necessário e urgente. Como se não bastasse, no mesmo dia, o Observador noticia que as crianças e jovens vítimas de maus-tratos que estavam com medida de acolhimento residencial foram devolvidos às casas de onde tinham sido retirados.

Com o país em estado de emergência e o regime de teletrabalho também a vigorar no que aos Direitos Humanos diz respeito, as crianças encontram-se entregues à sua própria sorte, como se os seus direitos tivessem ido de quarentena

Estima-se que, todos os anos, mais de 60 mil crianças e jovens em risco são acompanhados por 309 comissões de proteção. Sucede que, com o país em estado de emergência e o regime de teletrabalho também a vigorar no que aos Direitos Humanos diz respeito, as crianças encontram-se entregues à sua própria sorte, como se os seus direitos tivessem ido de quarentena. Na prática, os atos presenciais estão bastante limitados, privilegiando-se os contactos telefónicos, por videochamada, entre outros.

Estou certo (porque falo com vários colegas) de que todos, entenda-se Comissões (CPCJ), Equipas Multidisciplinares de Assessoria aos Tribunais (EMAT) e Centros de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental (CAFAP) procuram fazer o melhor e, às vezes, até fazem o impossível perante os recursos disponíveis para a casuística existente, mas, numa fase de isolamento que aumenta em muito o risco de violência familiar, esperava-se mais.

Não vale a pena escamotear. A realidade é que as visitas supostamente regulares são, na verdade, uma raridade e as chamadas ou videochamadas que os técnicos fazem, por mais bem intencionadas que sejam, são altamente falíveis. Basta pensar que há quem não atenda, nem devolva os contactos; há quem omita informação; e, inclusive, quem minta aos técnicos, negando um eventual cenário de negligência ou de agressividade, o qual se encontra com potencial de agravamento devido ao isolamento social.

Na prática, podemos ter uma criança ao telefone que foi agredida ou abusada, na noite anterior, a dizer que está bem, sem termos qualquer noção da existência de um adulto por trás a condicionar as respostas ou, até mesmo, a coagir a criança. Adicionalmente, existem perigos associados a quadros de negligência que as crianças ou jovens podem nem perceber e, consequentemente, nem os reportam. Às vezes, mesmo os profissionais, supostamente treinados e com contacto direto com os intervenientes, deixam passar em branco situações de maus-tratos, quanto mais com as limitações atuais que motivaram a escrita desta crónica.

Por isso, em bom rigor, as chamadas ou videochamadas não conferem às crianças o mesmo tipo de proteção, comparativamente a visitas regulares e uma abordagem à criança e respetivo agregado familiar caracterizada por proximidade.

Agora não existe o olhar dos profissionais da comunidade escolar, nem das atividades de tempos livres. Faltam os colegas, os amigos, os professores e outros adultos de confiança a quem estas crianças e jovens tendem a recorrer

Os professores são, muitas vezes, os primeiros agentes a sinalizar qualquer tipo de alteração no comportamento das crianças e jovens que indiciem negligência parental e/ou violência familiar. Porém, o facto de as aulas estarem a ser lecionadas à distância é também outro dos impedimentos para novas sinalizações de crianças e jovens em risco.

Agora, nesta fase em que a ansiedade, os medos e o isolamento criam vulnerabilidades ou exacerbam as debilidades psicológicas de agregados familiares que se encontram em condição de fragilidade, não existe o olhar dos profissionais da comunidade escolar, nem das atividades de tempos livres. Faltam os colegas, os amigos, os professores e outros adultos de confiança a quem estas crianças e jovens tendem a recorrer.

Para atenuar o risco de que muitas situações de maus-tratos não fiquem por identificar, exige-se, social e humanamente, o avanço da vizinhança. Infelizmente, uma vizinhança que poderá já estar preocupada o bastante para se aperceber das violências silenciosas que ocorrem dentro de quatro paredes. Se já com uma vida social aparentemente livre e exposta aos olhos da sociedade, os cenários de violência se perpetuam, não raras vezes, por vários anos, não será difícil de perceber que o isolamento social, já há muito identificado pela literatura da especialidade como fator de risco, tenderá a piorar todo este quadro.